Nunca Fui Beijada

Nunca fui Beijada
de Raja Gosnell, EUA, 1999
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a cada dia que passa tenho cada vez mais convicção que o grande desafio da vida é ser uma pessoa como qualquer outra. O cinema americano vai utilizar esse conceito com uma contrapartida ideológica (o cinema de massa, o consumismo), mas num mundo regido pelo individualismo, pelas pressões de ter que se destacar e ser bem sucedido, não deixa de ser um interessante paradoxo.

Nunca fui beijada é um desses filmes americanos (só pra ter uma idéia eu o vi na sessão da tarde...) que pegam uma idéia de crise para transfigurar a crise como parte natural do rumo das coisas, para acentuar a capacidade de reformulação. Até aí nada demais. Mas Nunca Fui Beijada seduz porque sua ingenuidade conseguiu ser traduzida para uma visão de cinema. Drew Barrymore é uma tímida e fracassada operadora de xerox até que recebe a chance de ser uma repórter e fazer uma matéria sobre o dia-a-dia de uma high school americana. Os filmes de high school americanos são os melhores do cinema americano porque o mundo dos adolescentes é cruel, e todas as pressões da sociedade americana podem ser refletidas num cinema sarcástico e irônico. Mas aqui não é o caso. Josie Geller, a personagem de Drew Barrymore, volta à high school para um acerto de contas. Na sua época, era tímida e fracassada; agora, é um sucesso. Toda a comparação entre um e outro momento é o que faz a diferença.

Raja Gosnell traduziu esse retorno com uma simplicidade desconcertante: o high school é uma espécie de conto de fadas filmado de forma realista, e toda uma idéia de redescoberta e rejuvenescimento assumem o primeiro plano do filme. O envolvimento de Drew B com os homens de sua classe é uma aula de dramaturgia e extremamente bem resolvida. A necessidade do sexo pela primeira vez e as pressões dos amigos de classe são visíveis, mas a delicadeza e o envolvimento dos personagens masculinos são absolutamente comoventes, como há muito não se vê no cinema americano.

Tudo se torna extremamente pessoal quando a matéria que Drew Barrymore precisa fazer para o seu jornal se torna a própria história da sua vida. A possibilidade de expressão pessoal dentro do universo da mídia de sensacionalismo e exploração dos sentimentos é diretamente problematizada no filme, porque afinal nunca Fui Beijada é um filme americano. Como se pode então ser pessoal dentro do cinema americano, dentro de um universo midiático de consumo de massa?

A feliz escolha de Drew Barrymore para o papel cristaliza várias das intenções do filme. Tímida e decidida, sua personagem permite uma distância (ela é acima de tudo um elemento estrangeiro, ou ainda a distância no tempo) e um envolvimento (ela passa a viver o mundo do colégio, esquecendo-se da matéria) notáveis, valorizados por uma expressão corporal de um comedimento e um “desajeitamento” que passam a se tornar característica de personalidade, sem nenhum tique ou caricatura. Humana, sua personagem evoca uma fragilidade que acentua toda a difícil problemática que envolve o filme: a irreversibilidade do passado, a dificuldade de envolvimento amoroso ou de entrega pessoal, a pressão para ser bem aceita. O filme coroa exatamente a lição do cinema americano: a matéria será um sucesso quanto mais as pessoas se identificarem com ela, quanto mais acreditarem que vem de uma “pessoa como qualquer outra”. A superexposição do universo midiático assume um ponto-limite: no centro do estádio, Drew Barrymore se oferece inteira a seu homem, na presença física dos milhares e ávidos leitores do jornal, como única possibilidade de redenção, desesperada e desesperadora. Assim estamos nós, os espectadores, rompendo essa privacidade – muito íntima, muito particular – de forma completamente invasora. Para ela não importa: seu grito, sua “única declaração de amor possível” vem através de seu ofício de repórter, vem através da escrita, sendo ela desajeitada demais para falar, para explicar tudo. A matéria é a única forma que ela dispõe de se expressar. Esse seu grito passa a ser “arte de massa”, passa a ser expressão pessoal dentro do universo midiático, mas acima de tudo é uma expressão interessada na vida, num problema concreto da vida: o texto por si só nada vale para ela se não conseguir o efeito desejado. Nessa superexposição absurda, Raja Gosnell filma de forma triste: as pessoas torcendo, o contador chegando ao zero, e a incrível seqüência do microfone caindo no chão (síntese do filme: o fracasso, a desistência de ser o centro da mídia, a atuação em torno dos objetos físicos etc etc). Depois ainda, um plano comovente, num close, Barrymore dá de ombros de uma forma muito humana, em que se desmascara toda a sua frustração quando ela tenta dizer (em vão) um ‘deixa pra lá”. Depois, é claro, o final possível do cinema hollywoodiano.

Chega!
Esse filmezinho mexeu mesmo comigo.

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