Cega Obsessão

Cega Obsessão
De Yasuzo Masumura
DVD, sab 5 de março 16hs
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Como se sabe, para o típico oriental, os temas do corpo e do toque são abordagens difíceis. Há sempre uma “distância respeitosa” que se expressa através do corpo. Este Cega Obsessão, extraordinário lançamento em DVD da Magnus Opus, primeiro filme de Masumura lançado em vídeo no Brasil, é um trabalho muito agudo sobre isso. Mas é um trabalho também que me atordoou muito porque vem muito de contato com as coisas que eu venho fazendo e pensando sobre cinema. É um trabalho sobre os limites do artista e de seu processo de criação. O artista do filme é cego, menininho mimado que nada sabe da vida e das mulheres, e não é à toa que faz trabalhos inúteis, toscos sobre o corpo feminino. Quando ele rapta uma mulher para que lhe sirva de modelo, seu equilíbrio se rompe, suas contradições se extrapolam. Inútil para a vida, inútil para a criação artística, o artista cego de Masumura é espelho da impotência do Homem ante sua própria criação, seja antes os dilemas da arte seja ante os dilemas da vida. O artista vive em seu casulo trancafiado da vida. Seu “estúdio”, retiro íntimo, lugar de criação, é expressão de suas “bizarrices”, de seu mal-estar: o lugar íntimo de criação e de desejo do artista é apresentado como um filme de horror, de forma magnífica: as paredes cheias de pedaços de partes do corpo humano, uma luz dura da lanterna que contrasta com a plena escuridão. 

O artista, sua mãe e a mulher-modelo formam um trio de notáveis limitações, e quando se estabelece a roupa suja entre os três, o filme vira uma tragédia, porque os três têm razão. E quando todos têm razão e não existe culpa, a coisa acaba no conflito. Mas Masumura quer ir mais além, e o terço final do filme é quase insuportável. O entrecho amoroso, os aspectos da descoberta do corpo e do prazer acabam assumindo um sentido mórbido. O prazer é degenerativo, e como seus limites são insuportáveis, acabam se revelando um instrumento de dor e de morte. Toda a coisa lúdica do corpo e do toque, das “teorias do artista sobre uma nova forma de criação baseada no toque”, acabam no limite se tornando essência destrutiva e mórbida. Aí Cega Obsessão vira um estudo sobre a putrefação da carne, sobre a natureza humana, sobre a transitoriedade da vida, sobre a impossibilidade plena do amor. E ainda mais bizarro é seu final: ao avesso de Dorien Grey, as mutilações no corpo da modelo se transferem para o corpo da escultura inerte, para a argila fria. São as marcas impressas no próprio corpo da criação; a vida que se imprime na matéria inerte, ou o artista que se arremessa para o interior de sua criação sem vida. Avaliação íntima sobre a alma da obra de arte, assume ao mesmo tempo um aspecto sombrio, de putrefação e de degeneração do próprio corpo da obra, que também ele é putrefato (isto é, a argila também se deteriora, assim como o próprio filme vira vinagre, não nos esqueçamos do final de Corrida Sem Fim, do Monte Hellman). Conclusão dolorosa e necessária nesse estudo sobre as impossibilidades do artista e do homem, um belo amargo filme de Yasuso Masumura. Imperdível.

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