CRIME DELICADO

Crime Delicado
De Beto Brant
Unibanco Arteplex ter 22hs
***½

Mesmo na correria, não posso deixar de falar sobre CRIME DELICADO. É simplesmente um dos melhores filmes brasileiros feitos nos últimos, sei lá, dez anos. Com isso, pode-se passar a sensação de que é um filme excepcional, uma obra-prima, um filme maior. Não é. Longe disso. É um filme imperfeito, agudo, estranho. Não é um clássico. Até mesmo por isso prova a sua importância no cenário brasileiro contemporâneo, em que o grande filme está sempre atrelado a um conceito de grife do cinema de arte ligado ao mercado internacional, como o exemplo do mediano Cidade Baixa e do ótimo Cinema, Aspirina e Urubus.

Crime Delicado pode ser visto por vários aspectos, e aqui nesse rascunho vou tentar levantar por alto alguns deles. Em comum, está a coragem de Beto Brant, em fazer um filme arriscado, imperfeito, desigual.

Primeiro, por se reinventar. Os três filmes anteriores de Brant estavam ligados ao cinema policial, a quase um cinema de gênero. Crime Delicado é o contrário disso: um filme intimista, de grande dosagem experimental, avesso ao cinema de corte clássico. Mas no fundo se percebermos bem está lá a influência do “clima policial” no filme, na atmosfera sombria, soturna, no lado mórbido dos personagens. Brant, então, com esse filme, revira pelo avesso o “cinema autoral”, o que já se esperaria de “um filme de Beto Brant”. Com isso, se reinventou.

Crime Delicado é um filme sobre o processo de criação. É sobre um crítico (a literatura, a escrita) que escreve sobre teatro e que se depara com uma modelo que posa para um artista plástico (a pintura). (Ainda deve-se lembrar que o filme é adaptação de livro de Sérgio Sant´Anna, isto é, uma obra literária). O início do filme é fantástico. Mostra o crítico lendo para si mesmo uma crítica de uma peça de teatro: enquanto lê, é ator, “dá voz” ao texto; enquanto se prende ao texto, é escritor. Antes, a peça de teatro. Plano fixo, longo, sem corte. Registro, representação, metalinguagem. O crítico vai a bares e se depara com a vida das pessoas, observa a vida dos outros para ter a sua própria. Num desses dias, tem a chance de ter a sua própria história.

A luz de Walter Carvalho é teatral. O artista (que pinta a modelo mutilada) é um artista de verdade (i.e não é ator). O filme então oscila entre o documentário (sobre o processo artístico) e a ficção. Com isso, lembramos de filmes como A Bela Intrigante (fic) ou mesmo Os Mistérios de Picasso (doc).

O pintor faz o quadro. Brant faz o filme. A escritura do filme na tela do quadro. A escritura da crítica na tela do filme. A escritura da vida no corpo da atriz.

Meu único senão (talvez) ao filme é que Brant nitidamente fecha mais com o pintor do que com o crítico. Falou dar um pouco de humanidade a esse crítico e um pouco de descaramento a esse pintor.

A ética do crítico; a ética do artista; a ética da modelo; a ética da Lei; a ética do editor do jornal (do jornalista); e por último a ética do diretor (que lê e reúne essas éticas). A modelo tem uma perna amputada (ela de fato tem uma perna amputada). O artista se utiliza de forma sórdida da deficiência da modelo? O diretor se utiliza de forma sórdida da deficiência da atriz (como queria a crítica da Veja?) O crítico se utiliza de forma sórdida da “deficiência” da atriz, para levá-la para cama? Se utiliza ou não se utiliza? Se utiliza de forma consciente ou inconsciente? Se utiliza de forma consentida ou sem consentimento?

Daí chegamos à questão do estupro, da iminência do estupro, da possibilidade do estupro, da cena do tribunal, a mais densa, talvez constrangedora do filme. Pelo fato de a acusadora ter uma perna amputada tudo muda de figura, a verdade é essa. “Por que não gritou?” – pergunta a juíza. Talvez por medo de ser ainda mais agredida. Talvez porque no fundo saiba que ele não queria machucá-la, que ele realmente a ama.

Como o amor pode ser doce e sórdido?! Como a arte pode ser doce e sórdida?!
Como a vida pode ser doce e sórdida?! Como um crime pode ser delicado?!

Num final sugestivo, em aberto (não se sabe se o crítico foi condenado ou não), num plano teatral, aberto, fixo, como toda a rigorosa e austera estética do filme, a modelo finalmente vai a uma exposição do quadro, vê a sua própria representação, a exposição de todos os seus mutilamentos, físicos, psicológicos, íntimos, escancaradas para o público (o que faz a arte a não ser expor as mutilações íntimas de todos nós!!??...). Ela deixa a perna postiça de lado, encara a sua deficiência. Vive-se melhor assim? Não sei. Talvez seja preciso tentar, acreditar nisso. Num corte seco, Brant acaba seu filme, sem conclusões, sem estardalhaços, sem a aura do filme perfeito. Crime Delicado é desde já um filme sobre o Brasil, sobre a arte, sobre a vida, sobre o cinema. Lembra Manoel de Oliveira, lembra Straub, lembra George Franju, lembra Rivette e lembra os filmes noirs. Lembra muito mais coisa.

Quem acusa Brant de arrogante ou explorador, desvela seu próprio moralismo. Mas isso já é outra história. Posso estar exagerado, mas HOJE tenho a mesma impressão de Arnaldo Bloch: Crime Delicado é o melhor filme brasileiro desde Aopção, de Ozualdo Candeias (1981).

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