Para que serve o cinema (pelo menos para mim e às três horas da manhã de uma terça-feira) ?

Envolver-me de forma mais profunda com o cinema me fez aprender um conjunto de coisas: conhecer o funcionamento de um conjunto de equipamentos, intuir o sentido de um plano como um recorte da realidade, constatar que, enfim, nenhuma imagem é gerada de forma espontânea, ou seja, é parte de um processo de construção ideológica que envolve necessariamente uma construção, uma fabricação. Mas acima de tudo a minha atração pelo cinema não foi tanto pela dimensão técnica ou pela ideológica, e sim por sua dimensão humana: eu, quando me encontrei com o cinema no início da minha adolescência, era um garotinho com um punhado de problemas, e me sentia diferente das pessoas ao meu redor, e sofria com isso. O que o cinema me passou foi uma visão da tolerância: através dos múltiplos olhares dos autores (e atores) de cada um dos mais estranhos e diferenciados filmes com que me deparava, fui observando que no fundo somos todos diferentes, e que não era apenas eu que me sentia distante e acuado ante a “miséria do mundo”. Isto é, por um lado, o cinema me fez conhecer “irmãos de alma”, travar contato com olhares que se aproximavam do olhar diferente e distante que eu tinha do mundo e das pessoas que me rodeavam na escola, em casa, na rua. Por outro, o cinema me mostrava olhares diferentes dos meus, e que ainda assim, me eram irmãos, porque, assim como eles, eu poderia entender o que significava ser diferente, e eu os respeitava por isso. Por isso, a grande lição do cinema para minha vida sempre foi a possibilidade da diferença de olhares, sensações e visões do mundo, a possibilidade da tolerância e do respeito à diferença.

Assim sendo, nunca consegui aceitar as pessoas que têm um conhecimento íntimo de cinema mas que insistem em repudiar a diferença, que denigrem a possibilidade da divergência por trás de um suposto “academicismo” teórico. Porque, para mim, a essência do cinema sempre foi a negação da autoridade e do instrumento de poder, para afirmar a legitimidade do diálogo e da multiplicidade de leituras. As minhas maiores brigas dentro do pequeno mundo do cinema sempre foram nesta direção.

O cinema, mais que cidadão, me formou como ser humano. Foi a minha “escola de vida”: através de seus olhares, enquadramentos e cortes, passei a respeitar quem era diferente de mim, exatamente porque lutava pela possibilidade da diferença.

Não sei porque mas ver The Brokeback Mountain me lembrou disso. Talvez seja na cena em que o protagonista vai à casa dos pais do amigo (amante) já morto. A mãe deste leva o visitante até o quarto do amigo. Ele olha o quarto, vai até a janela, e abre-a, colocando um pedaço de madeira para escorar a janela. Não sei porque, mas essa cena me lembrou o final de Não Amarás, que mexe muito comigo. O visitante de Brokeback era como Magda (a mulher de Não Amarás), revendo, a partir de uma ausência, uma lembrança que não pode ser mais revertida, e que se perde no espaço vazio. Tudo estava ali naquele quarto. O quadro, o tempo e o corte de Ang Lee são extraordinários. Heather Ledger olha pela janela. Ali está o cinema. Lembrei-me que tenho uma obsessão por filmar quartos, porque acho que eles transmitem uma aura de intimidade. Encontrei várias motivações minhas ali perdidas naquele quarto e me lembrei do que o cinema tinha me possibilitado, lá no início, na época quando vi o quarto de Não Amarás pela primeira vez.

Comentários

leonardo marona disse…
Porra, Ikeda, muito emocionante esse teu texto, imbuido de um fortíssimo espírito e, melhor, escrito com toda a naturalida, como se fosse criptografado.

Acho linda essa maneira que vc usou para justificar tua vontade de fazer e ver filmes.

Aliás, falando nisso, amanhã (quinta-feira), os gêmeos vão levar lá em casa "A Floresta sem nome", do Aoyama. Me lembro que vs tinha me falado desse filme, de como ele era impactante. Então, se quiser aparecer, está marcado para as 21:30 (um horário em que todos podem, porque montamos uma espécie de "clube" para vermos e conversarmos sobre as sensações que os filmes - serão vários, semana passada foi Sicilia, do Straub - nos trazem. Se quiser aparecer, será muito bem-vindo. Me liga pra pegar o endereço exato, mas é na Osvaldo Cruz, 112, bem pertindo da tua casa (tel: 9337-1657).

Só mais uma coisa: eu tenho como alugar Não amarás em locadoras comuns? Fiquei a fim de assistir.

grande abraço,

leo

Postagens mais visitadas