O fim do sonho

Texto que recebi por e-mail do Ozualdo Mizogroucho sobre Brasília 18%. Para avaliação dos senhores se concordam ou não. Eu ainda estou fazendo a minha...


O fim do sonho

A estréia de Brasília 18% foi cercada de grande expectativa: apesar de ter participado dos principais movimentos estéticos e políticos da história do cinema brasileiro, Nelson Pereira dos Santos estava sem realizar um projeto ficcional desde Cinema de Lágrimas, de 1995. Ou seja, este é o primeiro filme ficcional de Nelson a ser realizado desde o início da chamada “retomada”, ou ainda, desde o advento das leis de incentivo, e dos mecanismos de renúncia fiscal. Com essa distância e essa proximidade do cinema brasileiro que vem se fazendo hoje, em Brasília 18% o diretor pôde fazer uma espécie de avaliação das lacunas e do encurralamento da produção nacional de hoje. Com isso, fez um filme sombrio, que pode ser visto tanto como uma ilha dentro do atual estado de coisas como um retrospecto macambúzio das ciladas que envolvem o dito cinema brasileiro comercial.

Co-produzido pela Columbia, uma major, Brasília 18% busca sua vocação pelo cinema comercial através de sua estrutura narrativa: um thriller político que envolve assassinatos, perseguições e denúncias de corrupção. Mas o que o torna um filme peculiar é que Brasília 18% é um thriller que não busca a ação, e sim a inação. Todo o filme se passa na cabeça de um médico legista perdido nas memórias de um passado pessoal, envolto nas lembranças de sua falecida esposa. Essas lembranças o tornam incapaz de avaliar as conseqüências de sua ação para o presente e o impelem de partir para a ação. Encurralado pelas remotas memórias de um passado que ele não pode mais conseguir reverter, esse médico se revela completamente passivo, sendo levado pelas circunstâncias a agir. Mesmo quando age, é impulsionado por motivos outros, além do seu desejo. Isto é, não há desejo de fato na deambulação passiva deste médico pela cidade, há apenas um desejo de morte, ou ainda, um desejo de se ver livre de sua missão, apenas para que fique com a consciência tranqüila de seus atos.

‘Sou apenas um médico”. Com essa frase, o legista deixa claro que não quer se envolver na sórdida realidade que envolve o caso, mas acaba se envolvendo pelas circunstâncias, por um desejo que não é seu. O tom “técnico” desse médico acaba se rendendo ao tom “político” de seu ato, pois ambos são indissociáveis. A suposta neutralidade técnica da posição do médico sucumbe diante do caos em torno do qual sua decisão nitidamente terá influências.

Esse médico é uma espécie de “anjo caído”, retornando do estrangeiro para ser um juiz. Mas o passado o torna incapaz de se decidir por algo, incapaz de seguir suas próprias diretrizes de vida. Esse médico vive numa ilha, isolado em um passado distante, confuso, preso, encurralado.

Esse médico é de muitas formas um alter ego da própria posição do diretor dentro do cinema brasileiro do hoje. Perdido nas lembranças de um passado que não pode mais reverter, esse “anjo caído” toma consciência desse caótico estado de coisas mas não tem mais forças para agir. Esse médico não é mais dono do seu próprio destino.

Como dizíamos, esse thriller político produzido por uma major é conduzido com um grande arfar de cansaço, com um tom introspectivo e pesado completamente distantes do tema. O filme segue o olhar perdido e confuso desse próprio médico, o que nos leva ainda mais a associar a posição do diretor com a de seu protagonista. As viradas e os truques do roteiro são acompanhadas com desinteresse pela direção, que concentra sua atenção em termos de mise-en-scene nas transições que reforçam a ambigüidade entre passado e presente, ou entre sonho e realidade. Nelson busca um tom instrospectivo num filme que a princípio seria guiado pela ação. A dificuldade de articulação entre os dois tons do filme mostra um certo desinteresse da direção, como se fizesse algo em que não se acredita de verdade.

Ao final, a síntese do filme: esse médico não é dono do seu próprio destino, ele é levado pelas circunstâncias. Acovardado, deve assinar com o sistema, corroborar com o atual estado de coisas. Deve preservar sua família, que é a única coisa que ainda lhe resta. Revela-se um “anti-herói trágico”. A encenação desse final ético é quase canhestra, vulgar, anti-edificadora. Diante de todas as fragilidades do atual cinema brasileiro, seduzido pela possibilidade de realizar mais um filme por uma major, Nelson resolve assinar com o sistema, fazendo uma espécie de um cântico de lamentação, triste, sombrio, macambúzio. É o fim do sonho: pela primeira vez, o médico parece ter personalidade própria, parece ter acordado para a realidade. Não é mais possível um ato de heroísmo ou de redenção. Esse médico, que fora passivo ao longo de todo o filme, toma a medida final que parece inevitável mas contra a qual ele lutara ao longo de todo o filme, mas sem nenhuma força, sem nenhuma convicção. Ou seja, em vão. Ele assina o laudo contra suas convicções, confirmando seu fracasso. Embora seja possível entender suas razões, não se pode inocentá-lo: Brasília 18% é um ato de confissão de um cinema brasileiro em torno do seu fracasso, e a forma melancólica como Nelson realizou esse cântico nos comprova todo um terrível estado de coisas que envolve não só o cinema brasileiro mas o país em geral.

Ozualdo Mizogroucho

Comentários

Anônimo disse…
dá uma olhada no texto que fiz sobre o Capote e me diz o que acha.
considero que ficou bem legal, escrevi sobre um viés mais psicológico do que cinematográfico
falow!
Cinecasulófilo disse…
felipe, nao vi o filme, mas o texto ficou bem legal. é isso aí.

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