Por um cinema físico

The act of seeing with one’s own eyes
De Stan Brakhage, 1971
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Por um cinema físico

Conhecemos mais o trabalho de Brakhage pelo conjunto de filmes abstratos (tipo os hand painted films) ou as fábulas místicas (como Dog Star Man), mas este The act of seeing with one’s own eyes surgiu de uma série de três documentários que Brakhage fez em Pittsburgh no início dos anos setenta. A câmera registra uma autópsia, em cadáveres sendo dissecados por uma junta médica. E só. Aqui não cabe a ironia política de um O Sangue das Bestas, com sua narração arquitetada para ir de encontro ao que as imagens apresentam. Ao contrário, trata-se apenas das imagens. Os corpos existem por si só, como corpos, ou melhor, como conjunto de órgãos que vão sendo multiplicados ali diante de nossos olhos. Não há psicologia, não há vitimização, não há possibilidade de nenhum dos ganchos do cinema clássico (a identificação, a narrativa, etc.). Há apenas o cinema como registro físico de uma realidade, através da qual tomamos contato a partir da visão.

A forma como Brakhage filma as autópsias é de um realismo cru, pouco preocupado com um relato científico ou com a descrição da atuação em si dos médicos. Com planos próximos um tanto perturbadores, Brakhage faz cortes na imagem, assim como os médicos cortam os corpos. Se a princípio Brakhage usa as técnicas do cinema direto, registrando sem interferência, ele acaba compondo um corte profundo nesta mesma realidade, porque o detalhe se torna o todo, exatamente porque estes detalhes são o que não queremos ver, ou ainda o que o cinema tradicional nos oculta. Os corpos não são fetichizados como no cinema clássico. Com isso, The act of seeing faz uma reavaliação de dois dos grandes signos da sociedade midiática contemporânea: o sexo e a violência.

Também não se trata de valorizar o cinema abstrato por meio do grafismo dos cortes dos bisturis ou do propor uma certa epifania no grotesco dos cadáveres (como em Ressurreição, de Arthur Omar). A ética da filmagem de Brakhage busca uma distância ambígua, uma proximidade observadora, ou uma distância invasiva. Aqui quanto mais se busca um cinema meramente físico, descritivo, observacional, mais se revela o espírito de um cinema. Longe da alma desses cadáveres e perto de um modo possível de observar as contradições do mundo e do cinema.

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