Ave Reygadas!

Eu gosto de dizer que Wong Kar-Wai é um cineasta chinês que gostaria de ter
nascido no México, por seu fascínio pelo melodrama, pelas cores fortes e
pelos jogos de espelhos. Do outro lado da história, temos um cineasta
mexicano que gostaria de ter nascido na Dinamarca. Seu nome é Carlos
Reygadas. Reygadas, esse advogado que largou o emprego de diplomata para
fazer filmes, não busca o cinema "leve e cool" de um Apichatpong. Ele parece
ser conduzido por uma espécie de visão mística, em que cada plano, por mais
simples que seja, precisa ter um peso e um significado que o transcenda.
Alguns vêem esse desejo como mero exibicionismo, mas - uau - quem vê os
filmes de Reygadas com um certo respeito por sua proposta, sente que, para
ele, trata-se de "tudo ou nada". Um filme não é meramente um filme, é um
trabalho de entrega, visceral, radical, total. Mas, claro, é a entrega
possível para esse mexicano cujo grande sonho parece ser o de ter nascido na
Dinamarca.

Seus filmes são frios, meditados, calculados. São frios. Mas isso não quer
dizer que ele não sinta, que seus filmes não pulsem um desejo. Ao contrário.
E mais: isso não significa que faça apologia da miséria. Ao contrário. Todos
os personagens dos seus filmes estão envoltos num desejo de amar. A
possibilidade de amar mesmo numa terra seca é na verdade o grande tema da
filmografia de Reygadas.

Prova disso é uma sequência de Silenciosa Luz, o último filme de Carlos
Reygadas, que não sai da minha cabeça, porque me lembra uma das cenas da
história do cinema que mais mexeu comigo. É uma sequência simples, de um
filme simples, mas que eu tenho a mais profunda admiração desse mundo,
porque esse filme simples me fez ser uma outra pessoa. É uma cena de Não
Amarás, o filme do Kieslowski, quando o menino faz um convite para a sua
vizinha e ela finalmente aceita tomar um sorvete com ele. O menino (Tomek)
começa a andar em círculos, numa praça ao redor do conjunto de apartamentos,
junto ao carrinho de leite, com o qual ele fazia as entregas. O menino
rodopia como uma criança, com uma alegria, leveza e liberdade que me
passaram a (falsa) impressão de que a vida daquele menino poderia ser como a
de qualquer outro.

Há uma cena dessa em Silenciosa Luz. É quando o protagonista conta a um
amigo que irá encontrar sua amante, e parte em direção ao encontro dela. Ao
se despedir desse amigo, ele dá voltas com o carro em círculos e a câmera o
acompanha. É uma euforia fria, calculada (o travelling circular, e
especialmente o desfecho dele, é perfeito, em contraposição à câmera na mão
de Não Amarás). Mas é lindo, e isso não significa que Reygadas sinta menos
que Kieslowski, ou que aquele seja menos verdadeiro que este. É preciso
respeitar as diferenças: é o máximo a que pode se permitir esse diretor
latino cujo grande sonho parece ser o de ter nascido na Dinamarca.

Até por isso é uma das coisas mais bonitas do mundo ele assumir que seu
filme é uma homenagem ao cinema de Carl Dreyer.

Ave Reygadas!

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