De nåede færgen

De nåede færgen

(Eles Pegaram a Barca)

De Carl Th. Dreyer

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Já sabemos que a filmografia de Dreyer se desenhou em torno de três eixos: a de construir um cinema moral, a do lema “o amor é maior do que todas as coisas, e temos que entrar no jogo do amor num tudo ou nada” e a do cinema de influência griffithiana. Esse interessante curta de Dreyer trabalha os três pontos, e em maior grau, a herança do cinema de Griffith e seu aspecto moral. De nåede færgen (curta de 1948) pode ser visto quase como um institucional de campanhas de trânsito, alertando para os perigos da alta velocidade, e seu desfecho trágico é uma “crônica de uma morte anunciada”, já que a maior parte do filme é um cinema de decupagem que mostra a iminência do acidente. Ao contrário, há um certo sentimento de postergação do inevitável. Ou seja, é surpreendente a maturidade de Dreyer um compor um curta extremamente contemporâneo, porque reflete a essência do curta-metragem:a de ser uma experiência de linguagem. É um dos filmes mais divertidos de Dreyer, e o final, claramente tem uma conotação de humor negro, quase uma síntese da parábola moral (o tom institucional) da história combinada com seu desejo de uma linguagem visual (não deixa de ser uma gag visual) e do tom de “divertir-se” com os elementos de linguagem.

 

Pois bem (sejamos mais claros), um casal precisa chegar a uma ponte até determinada hora para não perder o horário de partida do barco, e corre, numa moto, na estrada, para conseguir o feito. Quem vê Gertrud e Joana D´arc e acha que o cinema de Dreyer é lento e duro porque ele só sabe fazer esse cinema, vai pular da cadeira com esse curta. A partir daí, o curta é só cinema de decupagem (estrada, moto, close do casal, ultrapassagens, etc.), enquanto o espectador só espera a iminência desse final (o acidente), que cada vez mais se anuncia mas ao mesmo tempo nunca chega. Muito há a ser dito sobre essa “postergação” desse final que parece ser irreversível, porque o filme desenvolve em puro cinema de corte seco, diversos sentimentos conflitantes: 1) por um lado, sentimos a adrenalina da velocidade junto com o casal, e ficamos excitados com isso; 2) ficamos receosos em relação ao acidente e ao destino desse casal; 3) à medida que o acidente demora a acontecer, quase chegamos a torcer que ele acabe acontecendo logo, para que a nossa tensão acabe. Esse jogo de tensões acaba sendo um exercício estimulante sobre o processo perceptivo no cinema, e Dreyer compõe um simples e hábil jogo de atração-repulsão em relação à velocidade e ao destino desse casal. Por isso, a habilidade do uso dos elementos de linguagem e a influência do humor negro. Por outro lado, a influência do cinema de Griffith na montagem acelerada e no suspense crescente, aliado a um cinema de base moral, a uma crítica de pano de fundo aos perigos dos novos desafios da modernidade (a velocidade). Por fim, o amor: não é à toa que um casal está na moto: o filme é sobre um passeio de férias de um casal, que terá a ameaça do destino. Reparem no rosto do motorista do caminhão, “assassino” que joga a moto de encontro a uma árvore: o que só nos lembra de outro eixo (o quarto) do cinema de Dreyer: a herança indireta do cinema expressionista alemão.

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