(Nawase docs I) Kya ka ra ba a

Céu, Vento, Fogo, Água, Terra

De Naomi Kawase

***

 

Bom, tendo uma certa familiaridade com o cinema de ficção da Naomi Kawase, aos poucos, vou tentar partir para os seus documentários, que são muito elogiados. Já havia visto Tarachime no É Tudo Verdade, mas preferi não tecer comentários sobre ele. O primeiro então para mim foi este Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (o título em português é estranho; o no original japonês é muito mais poético: Kya ka ra ba a).

 

Creio que é mais adequado falar sobre esse conjunto de trabalhos tendo-os visto como um todo, mas vou tentar fazer separadamente, já que não sei se vou conseguir vê-los numa pancada só, porque são trabalhos muito pessoais. Para mim especificamente são mais difíceis, porque i) é o cinema oriental em toda a sua essência; ii) é um cinema pessoal, de câmera de vídeo, cuja matéria-prima é si mesmo, o que me remete muito aos meus próprios trabalhos.

 

Assim sendo, vamos tentar começar:

 

Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, de 2001, é um vídeo com um tema difícil: falar de um reencontro impossível. E mais: esse reencontro é com o próprio pai da realizadora, que a abandonou quando criança. Ou seja, a realizadora foi criada por uma mãe adotiva, e agora busca os rastros de sua origem. Kawase parte para essa busca a partir do hoje, a partir das marcas que esse passado deixa nesse presente, e se questiona até que ponto esses rastros influem no ato da criação de, por exemplo, um filme. A princípio, podemos pensar que a abordagem de Kawase é muito próxima do cinema ligado às artes plásticas, pela forma inventiva como ela combina imagem e som e pela textura do material de diferentes suportes (super8, vídeo, filmes caseiros, etc.). Mas na verdade não se busca um cinema plástico, e sim um mergulho ímpar numa idéia de um cinema íntimo, mergulho esse sempre radical, lúdico e com um frescor surpreendente. Essa intimidade está relacionada a um cinema sensorial (a que o próprio título nos remete): um cinema que seja não só o olhar mas o corpo dessa cineasta em busca de si. Um cinema do olhar, pois todo o filme é um ponto-de-vista, único e singular. Um cinema do corpo, porque muitas vezes a câmera na mão e a voz da própria realizadora fazem com que o filme seja uma extensão física de seu próprio corpo, em que as imagens ganham um sentido de “presença” bastante forte. Por outro lado, essa “busca de si”: nesse percurso em busca de um passado a partir desse presente, Kawase relaciona esse trajeto com o próprio trajeto do filme enquanto suporte. Ou seja, se de um lado, o filme é sobre a busca desse passado como busca de si mesma, ele se confunde com o próprio processo de construção física do filme. Todas essas questões culminam para um final extremamente sugestivo, em que a diretora faz uma tatuagem no seu corpo, que lhe remete às tatuagens presentes no corpo de seu pai. Se por um lado, a paternidade para ela é uma marca irremovível, a tatuagem confirma o amadurecimento de uma certeza de que não é possível separar-se disso, pois seria separar-se de si mesma. Ainda, e Kawase discute isso com o próprio tatuador, o próprio processo de elaboração do filme (que estamos vendo) funciona como uma espécie de cicatriz, tatuagem de alma, cujo percurso se confunde com o processo da busca da identidade ao mesmo tempo que se desfaz através dele. A tatuagem revela a consciência de uma despedida mas, com ela, a formação de uma cicatriz de alma. De alma e de corpo. Olhar, alma e corpo. O cinema, então, passa a ser instrumento de memória, de identidade mas também cicatriz, que, através do seu próprio processo de realização, marca uma visão da criação artística que se confunde com a descoberta do ser. O cinema e a vida, portanto, constituem um todo orgânico, assim como natureza e homem, ou, em última instância “a realidade” e a “ficção”. Por isso, a importância dos elementos da natureza: é como se Kawase partisse dos movimentos cósmicos do ser em busca de sua própria origem uterina e que, através do cinema, essa busca possa ser possível quando criação e vida são partes de um único percurso em busca da natureza do ser. Bom, é isso (nos próximos tentarei ser mais objetivo...).

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