A Caminho das Índias

A Caminho das Índias
De Augusto Sevá e Isa Castro
DVD
** ½

Uma grande surpresa este infelizmente esquecido filme de Augusto Sevá e Isa Castro, a que tive acesso apenas graças a um DVD gentilmente fornecido pelo diretor. Um filme que mescla documentário e ficção ao abordar a chegada de um grupo de paulistas para explorar “as desvirginadas terras de Trancoso”. O 16mm – granulado, sujo, imperfeito no bom sentido – dá uma grande liberdade ao filme, com um trabalho de improvisação dos atores interagindo com os habitantes de Trancoso, de forma bastante livre, em alguns pontos dialogando com o cinema marginal (esp na famosa cena em que Zé Celso faz cocô numa praia...). Os paulistas vêm para explorar mas acabam se perdendo para se encontrar, rendidos às “belezas paradisíacas” do local. A combinação orgânica entre ficção e documentário nos remete ao recurso utilizado em Iracema, uma Transa Amazônica, só que aqui o olhar de Sevá e Castro é mais poético que político. E daí a participação de Zé Celso é fundamental, pois a base de A Caminho das Índias é assumir que esse contato com Trancoso não se dá apenas “de fora para dentro” mas especialmente que ele acontece através do cinema. Ou seja, não é propriamente um olhar de fora para dentro sobre Trancoso mas sim sobre o próprio processo da realização de um filme que olha “de fora para dentro” um lugar (um povo) outro. No entanto, os realizadores vão além: essa relação entre a presença da representação dos “estrangeiros” e dos próprios moradores locais é ainda mais problematizada quando a equipe promove uma exibição pública, na praça de Trancoso, do próprio filme, que está sendo feito! (isso antes de Cabra Marcado e filmes do tipo...) Ou seja, os moradores locais têm acesso à visão do estrangeiro sobre suas próprias vidas durante esse mesmo processo de realização do filme. Todas essas camadas (documentário e ficção, realidade e representação, moradores locais e estrangeiros) em última instância são associadas a uma outra camada: o cinema e a vida. E o mais admirável é que os realizadores buscam não a separação, mas a junção entre essas camadas, de forma que o filme ao final se torna um grande carnaval, congraçamento das diferenças, mas sem deixar de afirmar que no fundo esses estrangeiros vão à Trancoso para extorquir suas riquezas, para depredar. Esse tom de “auto-denúncia” nos associa ao cinema de Sérgio Bianchi, especialmente no início, quando, num barco, ator e morador local interagem sobre uma terra comprada cujas árvores já foram derrubadas. Além disso, esse tom toma novas proporções quando a “descoberta de Trancoso” é associada à própria “descoberta do Brasil” (como o próprio título informa...). Ou seja, a história se repete, a história da colonização e da expropriação, dos mais fortes pelos mais fracos. Ou ainda, representação da representação: o cinema reencenando diante dos moradores de Trancoso a chegada da corte ao Brasil. Alegórico e realista, crítico e poético, carnavalesco e neo-realista, o cinema libertário de A Caminho das Índias merece ser mais conhecido, redescoberto.

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