(MFL) Dellani-ilha

O Sonho Segue Sua Boca
De Dellani Lima
CCBB sala vídeo ter 26 fev 19hs
***

Depois de alguns dias vendo os filmes da Mostra do Filme Livre com a responsabilidade de “julgá-los”, ontem foi o dia da diversão: o mais aguardado longa da Mostra, pelo menos para mim, era aquele passando num dia de semana na discreta sala de vídeo do CCBB, escondido em meio a tantos curtas e panoramas da Mostra, passando quase despercebido. O Sonho Segue Sua Boca, é o terceiro longa de Dellani que assisto, depois de Sobre o Amor em Tempos Difíceis e O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas. Ou seja, representa a continuidade do trabalho, ainda pouco (re)conhecido do mineiro Dellani Lima.

Ao longo de sua projeção, uma sensação de fascínio e maravilhamento despertou em mim, pois os filmes do Dellani têm muito em comum com os meus projetos, com a possibilidade de fazer “filmes caseiros” completamente dissociados do esquema comercial de lançamento, para simplesmente se aventurar pela possibilidade de experimentar o cinema e a vida. Quando se fala em longa-metragem então, a tendência em se pensar em um formato para “exibição comercial” é inevitável. Ficamos pensando então na recepção dos filmes americanos de vanguarda, os filmes de um Jonas Mekas, Stan Brakhage e seus demais asseclas (Walden, por exemplo, tem mais de três horas de duração), que formaram um circuito alternativo às salas de cinema tradicionais.

O Sonho Segue Sua Boca já pelo título – aliás brilhante – apresenta suas intenções: ser um inventário em que o lado sensorial (a sinestesia, a aliteração) vale muito mais que o narrativo. Neste que é o seu melhor trabalho, Dellani realiza um cinema da afetividade: um quarto, um corredor, uma pia são a matéria-prima desse espaço físico que se confunde com a expressão de um clima particular, com uma forma de se inserir no mundo. E de um cinema de exposição pessoal. Num momento muito sugestivo, o próprio realizador aparece de frente para a câmera, entoando, a seu modo, uma canção.

Por outro lado, o filme é uma espécie de crônica de costumes, inventário de sentimentos sobre a situação do cineasta independente no Brasil, e ao mesmo tempo filme sobre a amizade e a identidade na diferença. Dellani, Baiestorf e Gabriel Sanna (especialmente) falam, quase sempre, sobre criação, vida e cinema. O Sonho Segue Sua Boca, revela-se, então, um filme em processo de ser feito, um filme sobre sua própria condição, o que é confirmado ao final quando são mostradas cenas do próprio filme com bastidores de sua própria realização, como as que mostram Dellani orientando seus atores antes das gravações.

Viver criando, criar vivendo. O Sonho Segue Sua Boca acima de tudo encanta pela generosidade do olhar de Dellani para seu universo. Um “documentário” sobre o dia-a-dia de seu autor, mas sempre com enorme carinho pelas possibilidades do percurso. Um filme com o tempo da vida. Mas um tempo sempre delicado. A delicadeza de Dellani é reforçada por uma montagem livre e pelo rigor particular no tratamento das imagens, característica do cinema de Dellani que revela o diálogo com as artes plásticas e o cinema francamente experimental.

Por fim, O Sonho Segue Sua Boca tem a estrutura de um sonho. E um sonho sempre se sonha sozinho, ainda que esse sonho seja povoado por dezenas de outros. O primeiro plano do filme mostra Dellani dançando freneticamente numa festa; o último, o mostra completamente chapado, talvez na mesma festa. Percurso do êxtase, do delírio e da fadiga. Necessidade de se alimentar e de se realimentar, de energia, de amor, de solidão. O Sonho Segue Sua Boca nos faz acreditar na possibilidade do cinema nos dizer tanto com tão pouco, e nos caminhos oferecidos pelo cinema digital em busca de uma intimidade perdida, que só os diários e os “filmes pequenos” podem nos dar.

* * *

Dellani Lima ocupa uma posição marginal dentro do cinema mineiro. O Sonho Segue Sua Boca não é um filme que terá a repercussão de um Andarilho, ou das demais obras experimentais do cinema mineiro, já consagradas no Brasil e no exterior. No entanto, o diálogo de Dellani com o cinema mineiro é indiscutível: a poesia com que se articulam imagem e som, o diálogo com as artes plásticas, a imbricação indissociável entre documentário e ficção. Distante e próximo do cinema mineiro, o cinema de Dellani Lima e especialmente este O Sonho Segue Sua Boca são uma ilha dentro do cinema mineiro, dentro do cinema brasileiro, dentro do cinema do mundo. Uma ilha paradisíaca, lugar de encanto e pequenas descobertas impensáveis. Um filme com um enorme sentimento de liberdade, fertilizado pela vontade e pela necessidade de se expressar, através do cinema e da vida.

Há de surgir uma geração de críticos realmente independente e descompromissada para dar o seu real valor a obras como essa. Interessada em descobrir autores verdadeiramente à margem do sistema, e não de fazer política através da crítica. E a única possibilidade de esta surgir é a partir da blogosfera. Que esta então seja uma semente! Quem sabe daqui a trinta anos este filme seja visto de forma análoga a como hoje vemos os filmes da vanguarda americana....

Comentários

Anônimo disse…
este é mais um daqueles filmes (os melhores!)onde o invisível é muito mais importante do que o que se vê. eu mesmo não me lembro de ter falado nada naquela madrugada chuvosa de terça em que o tuca me ligou me pedindo a camera emprestada e me convenceu a ajudá-lo com seu próximo filme. mal sabia eu que o filme já estava acontecendo ali...

gabras

Postagens mais visitadas