Offret

O Sacrifício
de Andrei Tarkovsky
*** ½


Falar de O Sacrifício, de Tarkovsky, assim como de qualquer filme do mestre russo, é um desafio. Eu começo dizendo que quando foi filmar O Sacrifício, Tarkovsky estava morrendo. E ele sabia disso. E eu, quando vi o filme, sabia que ele sabia. Isso faz com que a experiência de assistir ao filme seja profundamente comovente e emocionante, porque todo o filme é um cântico de despedida, assim como de certa forma já o havia sido seu filme anterior, o extraordinário Nostalgia. Mas em O Sacrifício esse tom solene de despedida é escancaradamente maior. Tarkovsky resolve ir direto ao assunto, e em contraste com o pintor Andrei Rublev, que adotou o voto de silêncio para poder melhor se expressar através das imagens a dor que sentia, aqui Tarkovsky resolveu falar pelos cotovelos, como se fosse a última vez: não se pode mais perder tempo, tudo é muito precioso. Por isso é muito comovente pensarmos no filme como uma história (um legado) que o pai deixa ao filho, cuja estrutura aparece no início e é retomada ao final do filme (coroada com uma extraordinária dedicatória ao final, que ainda pretendo retomar em outro texto).

Há ainda outro dado, que faz toda a diferença: O Sacrifício é um filme no exílio, é um filme sobre morrer no estrangeiro. Aqui, Tarkovsky se alinha a Dostoievski, a Tolstoi a todos os mestres da literatura russa que narraram o fim de uma era. O Sacrifício é também um filme sobre a liberdade, pois o personagem de Erland Josephsson tenta se isolar do mundo para conseguir um conforto espiritual, mas apenas se omitindo ele não consegue evitar a possibilidade de o mundo se acabar, numa hecatombe nuclear. O exílio, o retiro, é um gesto egoísta, não muda nada. E é preciso mudar. Isso faz com que o personagem carregue um tom místico, obscurantista, irracionalista e obsessivo que faz o filme ter um tom bastante particular e estranho. Isso já havia no terço final de Nostalgia, mas aqui é mais claro: essa idéia maluca e obsessiva de ter que fazer um sacrifício para salvar o mundo. A racionalidade foi incapaz de salvar o mundo; é preciso um tom místico para que se consiga salvar a humanidade. Esse tom profético, esse discurso de fé, é apresentado a partir de uma cinematografia bastante rigorosa, com planos bastante alongados, com travellings sofisticados e pela opção pelo plano geral. No início do filme há um plano bastante longo do pai, filho e carteiro com um longo trilho que acompanha o trio em grande plano geral, que talvez seja a síntese das opções de linguagem do filme. Da mesma forma, ao final há o inacreditável incêndio da casa, num delirante plano-sequencia que mostra a casa pegando fogo e a reação de Josephsson e de seus parentes na área em torno da casa. Incêndio que possui um inevitável paralelismo com o de Nostalgia.

Mas depois do incêndio (que para mim é uma das sequências mais inacreditáveis da história do cinema, ainda mais pelo conhecido fato de que teve que ser refeita por uma falha na câmera), ainda há o final, extremamente sublime, que retoma o início, quando voltamos ao “homenzinho”, ao filho, e à àrvore. Ao longo do filme, ouvimos a frase: “a vida é uma árvore que plantamos uma semente e não sabemos se irá florescer”. O mesmo pode ser dito para um filme, para uma obra de criação artística. Essa frase está lá no final do filme do Tarkovsky e o “homenzinho” está lá regando a árvore, e para quem acompanhou o filme, está lá toda a esperança do mundo. É preciso lembrar mais uma vez que esse é um “canto do cisne”, o fim do fim, a despedida de Tarkovsky da vida. Ele resolve dar um beijo afetuoso e um gesto de esperança. O menino pergunta “e no início era o Verbo. Por quê, pai?”

Nada poderia ser mais comovente porque para Tarkovsky a esperança vem da dúvida.
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Comentários

natércia pontes disse…
vi o filme no ano passado - e revi agora te lendo ikeda. compartilho com as tuas observações.
lembra que a árvore estava morta?
um beijo para você,

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