curtas BH (I)

Bom, resolvi assumir a não-linearidade das minhas impressões de viagem... segue agora um curta bastante singelo que vi no Festival de BH...

Encanto
de Julia de Simone

Ao chegar em BH, em minhas costumeiras caminhadas pelo centro da cidade, conheci o Mercado Central. Entre as dezenas de barracas de especiarias e comidas típicas, havia um setor que me intrigou: um conjunto de gaiolas em que pássaros e outros animais se aglomeravam, mediante os olhos atentos dos curiosos, especialmente as crianças, que lotavam o lugar. A forma como aqueles animais expostos se tornava quase que um espetáculo me angustiou em cheio.

Talvez esse sentimento tenha me influenciado quando, justamente no dia seguinte, assisti a exibição de ENCANTO, curta carioca de Julia de Simone, projeto de final de um curso de pós-graduação em documentário realizado pela diretora em Barcelona. Julia me confessou que achou a experiência de viver em Barcelona um tanto fria, já que os catalães têm um sentimento de exclusão em relação à Espanha e mesmo à cultura espanhola, e são pessoas de um trato distante e frio.

O curta de Julia também não deixa de ser sobre isso, um olhar estrangeiro sobre um processo outro, mas acaba podendo desvelar outras mais diversas leituras. Encanto apresenta uma espécie de clube onde criadores de pássaros apreciam o canto de seus filhotes. Praticamente sem diálogos, Julia segue os princípios do cinema de observação, com uma câmera rigorosa fixada em um tripé e praticamente imóvel. Essa opção traz um inevitável distanciamento em relação ao que está sendo filmado, e essa distância desse olhar estrangeiro nos oferece inúmeras leituras: a primeira é que Encanto não é um filme sobre criadores de pássaros, e sim um filme sobre a liberdade.

Num filme sobre pássaros, seria inevitável que fosse um trabalho sobre o som, mas mais do que isso, Encanto é um trabalho sobre o olhar, o olhar obsessivo dos homens (em geral bastante idosos) para os pássaros, presos em suas gaiolas. É um filme triste, melancólico: o olhar dos velhos sugere um enorme sentimento de solidão, e apesar do encanto desse olhar, a comunicação entre eles e os pássaros continua improvável, indecifrável. É como se os velhos tentassem sorver um pouco do mistério da beleza desse canto, que ainda assim permanece indecrifrável. Essa profunda solidão dos velhos e sua morosidade, entre as tarefas rotineiras do lugar, não deixam de oferecer um contraste com o jeito lépido dos pássaros, na manifestação da beleza do seu cantar. Ou seja, é como, mesmo dentro de suas gaiolas, os pássaros fossem mais livres que os seus donos, que aprisionam uma beleza que não possuem enquanto aguardam a hora de morrer.

Há uma cena bonita que resume a questão: um dos senhores anuncia o falecimento de um dos sócios, e pede um minuto de silêncio. Os demais obedecem, menos os pássaros, que continuam cantando como sempre. Nesse momento, Encanto se revela um filme sobre a linguagem, ou melhor sobre os limites da linguagem, inclusive a cinematográfica. Encanto nos “encanta” especialmente porque ele é um documentário que se concentra no que não é dito, no que não conseguimos ver (ou ouvir).

A elegância e a delicadeza do olhar de Julia só são quebradas por uma cartela ao final do curta, excessivamente didática, mas nada que tire a singeleza desse pequeno trabalho sobre o olhar e o som, sobre uma ética de um olhar estrangeiro, sobre a intimidade de um olhar distante, sobre o abismo do mundo dos pássaros e dos seus donos, sobre a impossível tarefa do homem em viver em liberdade.

Dois dias depois retornei ao Mercado Municipal. Meu olhar sobre aqueles bichanos estava totalmente modificado. A esta hora, Julia já estava de volta ao Rio de Janeiro, provavelmente correndo, falando exasperada ao telefone, em sua tarefa rotineira de produzir uma série de uma grande produtora para um grande canal internacional. Encanto também não deixa de ser sobre o absurdo de tudo isso.

Comentários

Anônimo disse…
Não vou comentar sobre cinema, sobre curta-metragem, documentário, nada disso. Vou comentar sobre literatura mesmo.
"um dos senhores anuncia o falecimento de um dos sócios, e pede um minuto de silêncio. Os demais obedecem, menos os pássaros, que continuam cantando como sempre."
Aliás, nem vou comentar. Sublinhar esse par de frases já demonstra meu apreço.

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