PRAIA DO FUTURO

Cinema do futuro, ilha do presente


Não deixa de ser curioso o título de PRAIA DO FUTURO para o longa que consagra a consciência do despertar de uma nova geração no cinema cearense. É a partir do desejo pelo futuro, pelo que a vista (e os olhos) não conseguem alcançar, pelo que está além do quadro, que se organiza cada um dos episódios de PRAIA DO FUTURO. Ou seja, por um desejo de esperança, por uma vontade tamanha de tornar o cinema algo menos esquemático, mais vivo, curioso, estranho, movediço, indefinível. Se esse desejo é vivido de forma singular por cada um dos realizadores, ele é, por outro lado, parte de um desejo coletivo, parte de um caminhar, que vem agora fornecer seu primeiro produto definitivo. O primeiro elemento de PRAIA DO FUTURO é portanto o da consciência desse sonho: é possível dizer que no Ceará vem surgindo um movimento, uma geração que pensa, cresce, filma e vive juntos, cuja raiz está na presença de pioneiros como Alexandre Veras e Armando Praça, que passa pela estratégica posição de Ivo Lopes Araújo, pelo “êxodo urbano” e pelo conhecimento do cinema contemporâneo dos Irmãos Pretti, e encontrou sua reverberação nos (infelizmente finados) cursos do Instituto Dragão do Mar e na primeira turma da Escola do Audiovisual.

Ali surgiu um cinema do futuro cuja principal raiz é o diálogo com o presente. De um lado, todo um sentimento de distância em relação a uma cidade e a um cinema brasileiro: distância das representações usuais do Nordeste, reminiscentes seja do cinema novo seja das releituras do cinema brasileiro da retomada; distância física do cinema do eixo Rio-São Paulo e das leis de incentivo; distância do cinema politiqueiro, da necessidade de engajamento institucional para auto-promoção. Distantes de tudo, mas perto do mundo, perto de si mesmos. Para essa geração, as distâncias se tornaram relativas: é possível dizer que o Ceará é mais próximo de Taiwan do que do Rio de Janeiro, ou ainda, é mais próximo de BH do que de Recife. Essa ausência é contrabalançada por um sentimento de pertencimento, a um cinema do mundo, a um cinema de hoje. Distância dos “ruídos de sempre”, aproximação do cinema contemporâneo. A internet propiciou um enorme canal de proximidade com o mundo, com a libertação da dependência do circuito de festivais ou do próprio circuito comercial para se ter contato com “o melhor cinema do mundo”: o próximo filme do Pedro Costa está logo ali, ao alcance do mouse, e ele paradoxalmente parece mais próximo de quase tudo o que vem sendo feito no cinema brasileiro.

A partir desse diálogo com o cinema contemporâneo, o cinema do futuro se traduz em um cinema do presente. Uma espécie de ilha, isolada geográfica e politicamente, onde surgiu veio fértil para que uma geração pudesse se expressar. Mas como é possível que uma idéia de liberdade possa se manifestar em um grupo a não ser pela possibilidade da diferença, pela manifestação das suas singularidades? Por isso, nada mais coerente que um filme de episódios, cuja fragmentação é o retrato da multiplicidade de olhares e de influências distintas. Mas por trás dessa fragmentação, é possível identificar uma certa identidade na diferença, que se estabelece através de um processo de diálogo e de troca: não é à toa que o diretor de um dos episódios apareça como montador de outro, e assim sucessivamente, de forma que as equipes todas se revelem uma só.

Unidade que também surge de uma certeza, de que todos (ou quase todos) respiram os ares de um cinema cearense contemporâneo. Por isso, a base do filme está num espaço físico definido – a Praia do Futuro – que estabelece a premissa para o filme. Os episódios, de certa forma, refletem muitos dos elementos citados acima que compõem uma espécie de painel das inquietações do grupo: o cinema feminino e o diálogo com a videoarte (Chama Violeta, de Thaís de Campos, e Mar Morto, de Mariana Smith), a sensação de estrangeiro (em episódios tão distintos quanto o choque entre a imagem panorâmica e voz íntima de Eu Errei, Você Errou, de Wanessa Malta, e a alegoria do excesso como diálogo com a ficção científica de Valores Imaginários, de Ricardo Pretti), o mar como situação-limite (Aprenda a Nadar, de Salomão Santanna, e Vídeo 2008, de Pablo Assumpção), o cinema sensorial que flerta com o narcisismo (p.f, de Fred Benevides), o despojamento e a intimidade do “cinema caseiro” de Castelo de Areia, de Guto Parente e Thaís Dahas, a negação dos típicos elementos nordestinos e o cinema dos espaços (Pequena Grande História, de Luiz Pretti), a sensação de imobilidade e o cinema gráfico (as fotos de Depois do Fim, de Ythallo Rodrigues), a metalinguagem como sinal de encontro e a mistura de texturas (A Linha da Pipa, de Themis Memória), o desencontro como símbolo de um não-pertencimento em A Pedra, de Rúbia Mércia, ou o cinema (justo) de espaço e tempo, imagem e som de Onde o Tempo Se Perdeu, de Ivo Lopes Araújo. Elementos que não estão isolados, mas perpassam os episódios, estando também, em maior ou menor grau, presentes aqui ou acolá, garantindo uma espécie de diálogo subterrâneo entre eles.

Por isso, de certa forma, buscar definir o que seja o filme PRAIA DO FUTURO como um todo acaba se revelando, ao final de todo esse processo, uma tarefa um tanto despropositada. Porque sua essência é nitidamente fugidia, como uma ilha misteriosa, em que cada um dos espectadores pode se aventurar por um recanto particular, que deve ser percorrida sem bússola, sem mapa, sem relógio (uma boa sugestão é que a ordem dos episódios pudesse ser randômica, diferente a cada exibição…): deve-se ter a consciência que ao ver PRAIA DO FUTURO o espectador nunca procure se encontrar e sim deve se deixar perder. Pois não é essa a verdadeira lição do cinema contemporâneo?

Comentários

Anônimo disse…
"Distanciao do cinema politiqueiro".

Pois sim. O cinema do Ceará, esse que você fala, é ao menos tão politqueiro quanto qualquer outro. A diferença é só de escala. No mais, 'Praia do Futuro' é um filme sofrível. Se, de fato, é cartão de visita da nova geração do Ceará: pobre Ceará! Quero passar ao largo dessa praia e desse futuro.
Anônimo disse…
falar de politicagem sobre esse filme é um despropéosito, pois é um filme feio de maneira completamente livre de amarras institucionais. não houve um centavo que não saísse do bolso dos realizadores. não há comprometimento com nenhum grupo ou instância política. há sim, uma vontade de reunir pessoas. críticas são sempre bem vindas, quando há um propósito. dar a cara a tapa, meu caro, faz falta pra construção de um mundo onde o indivíduo seja inteiro e não partido.
o filme pensando como filme, assim episódio atrás de episódio, é de fato cansativo. pelo menos ali, foi. Gosto do texto acima, que trata de cada realizador e sua obra, e acho que pensar o filme como fragmentos é a melhor maneira de entendê-lo e com ele se deixar ir. nem todos tem olhos e mente aguçadas para absorver a verve de realizadores contemporêneos e suas realidades interpretadas. há que se ter paciência com ambos: o espectador que viveu sobre o quase dogma da sessão da tarde (ainda mais nesse província da cidade grande e pequena que é fortaleza) e com os realizadores, que pensam e interpretam o que está ao redor. o filme vale muito. vale pela oragnização de tantos artistas que vivem a cidade à sua maneira (e não vivemos todos à nossa maneira?), pelo incentivo que, com certeza deu a outros (falo por mim), pela participação na construção de uma identidade de cinema (q respira!!!) em fortaleza e no ceará, pela mobilização das pessoas dessa cidade a sairem dos bares e irem ao cinema. eu digo é parabéns, ó!

abraços

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