Alex Viany: o crítico versus o cineasta

Sol Sobre a Lama, de Alex Viany *
Rua Sem Sol, de Alex Viany *
Ana, de Alex Viany ***


A importante e imperdível mostra no MAM sobre Alex Viany para mim coloca uma questão primeira: a relação entre a crítica e o cinema, no caso um crítico que também é cineasta. Como os filmes desse diretor se relacionam com as idéias desenvolvidas nos seus textos críticos? Isso é um tema (para mim pelo menos) extremamente interessante e bastante atual (é só lembrarmos por exemplo que Eduardo Valente acabou de apresentar seu primeiro longa). Então pensamos: até que ponto o diretor é coerente com suas idéias colocadas como crítico?

Vendo os três filmes de Viany em conjunto, somados ao Agulha no Palheiro, que já tinha visto anteriormente, apesar de ter dele uma lembrança fugidia, a impressão é infelizmente negativa. Em seus escritos, em especial no histórico livro Introdução ao Cinema Brasileiro, e também na sua participação nos Congressos do Cinema Brasileiro, nos anos cinqüenta, Viany defende uma certa idéia de um “cinema independente brasileiro”. Acontece que, nos seus filmes, ele praticamente joga por água abaixo qualquer idéia mais coerente de um caminho razoável para o cinema brasileiro.

Nesse ponto, Agulha no Palheiro é mais coerente, como um filme popular, de modo de produção barato mas com uma certa possibilidade de dialogar com um público mais amplo. De outro lado, Ana é um filme de ritmo mais contemplativo, que demonstra as virtudes de Viany como diretor tendo um bom roteiro a mão (os três longas têm roteiros, digamos, um tanto sofríveis). Episódio do longa Rosa dos Ventos, organizado por Joris Ivens, Ana, o episódio brasileiro dirigido por Viany com roteiro de Alberto Cavalcante, mostra um conjunto de pobres trabalhadores indo de caminhão para São Paulo na esperança de uma vida melhor. Cinema de inclinação humana sem grandes estardalhaços melodramáticos e sem se render ao espetáculo ou ao popularesco – as tendências a que Viany sempre se rendia. O ápice desse média é sem dúvida a inesquecível cena do parto na beira da estrada: a decupagem precisa, o ritmo lento, marcado pelo sol a pino do sertão, o som seco, a abordagem concisa, nos lembra até o estilo de Vidas Secas, já que esse episódio é de 1955.

Rua Sem Sol é um projeto de encomenda que Viany aceitou dirigir em substituição a Mario Del Rio, que chegou a dirigir as primeiras cenas do filme, passadas numa delegacia. É um grande melodrama que conta a história de uma mulher que se prostitui (na verdade vira dançarina de um cabaré) para cuidar da irmã cega doente, depois que elas ficam pobres (desamparadas) com a morte do pai. É estranho porque o roteiro – bastante frágil – combina vários estilos: o melodrama feminino “meu mundo caiu”, o lado policial (o filme é narrado em flashback no depoimento da mulher na delegacia depois que é presa, há uma tímida exploração de um submundo com o dono do cabaré, etc.) e um lado meio humorístico, com a presença de um amigo do pai das duas irmãs, que é um compositor popular (é o lado “agulha no palheiro” do filme). Essa combinação estranha até que é bem articulada por Viany, e o filme também conta com boa atuação de Glauce Rocha. Há um plano digno de nota: ao sair do cabaré, perambulando pelas ruas quase de manhã, Glauce Rocha dá de cara com esse amigo do pai dela. Nessa surpresa há um momento estranho: uma câmera na mão e um corte rápido para o mar. Esse breve plano do mar foi uma coisa que me marcou muito nesse filme. No entanto a fragilidade do roteiro em muito compromete o filme, ainda que a direção sóbria de Viany indiscutivelmente contribua para salvar o filme do total desastre. Mas ainda assim fica a questão por que Viany resolveu aceitar o convite para dirigir o filme. Por fim, ainda fica a sensação de que, com um filme de “inclinações morais” antiquado como esse, Viany estava muito mais do lado do “grupo paulista” (Khouri e Biáfora, por exemplo) do que daqueles que batalhavam de fato por um cinema criativo e de invenção brasileiro.

Depois de Rua Sem Sol, nada melhor que Sol Sobre a Lama. Já pelo título percebe-se que tratam-se de dois trabalhos antípodas. Do melodrama conservador moralista, Viany agora vai dialogar com o “cinema baiano”, com o “pré-cinema novo”, num roteiro com tendências esquerdistas e políticas bastante evidentes. O filme fala dos trabalhadores do porto na Bahia, revoltados com o desleixo das autoridades em relação à limpeza e com condições extremamente precárias do local, ainda que cobrando altos impostos, e tentam se insurgir contra as forças locais. O argumento é bastante “revolucionário”, mas Viany foi muito criticado por dois motivos: primeiro que o roteiro desenvolvido por ele e Palma Netto (também produtor) incita a uma tentativa conciliadora, um apaziguamento do conflito, condenando os trabalhadores que partem para a violência e, no final, propondo uma aliança com o prefeito local e a morte do líder da insurreição. Segundo, por promover um “cinema espetáculo”: ao invés de buscar um estilo “neo-realista”, Viany contrói a vila dos trabalhadores de forma falsa, sem vida, e enche o filme de gruas e grandes cenas de ação, buscando o espetáculo, num filme de grande orçamento e em cores. Resulta num filme confuso, mais longo do que deveria (e ainda assim Viany brigou com o produtor, chegando a entrar na justiça para que retirassem seu nome dos créditos de direção, já que o produtor remontou o filme à sua revelia...) e conceitualmente absolutamente equivocado. Equivocado em relação a um projeto para o cinema brasileiro, mostrando que no fundo Viany acabou seduzido pelo poder e por Hollywood, que ele conheceu bem como correspondente da revista Cruzeiro. Por outro lado, o filme não é propriamente um desastre, pois Viany combina no filme elementos cinematográficos que o interessam, como o início tipicamente influenciado pelo cinema japonês e as cenas de ação, bastante bem filmadas.

Se os dois filmes, como obras cinematográficas, são interessantes, apesar de não serem particularmente bem-sucedidos, de um lado apontam para conceitos de cinema quase opostos, e ainda assim distantes do caminho trilhado, por exemplo, pelo cinema novo. Mas o que mais assusta ao vê-los é como eles se afastam da coerência das propostas de Viany para um cinema brasileiro, defendido ao longo de suas críticas e de seus textos.

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Será que os filmes de Viany permanecem atuais?

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