Tempos de Paz

Tempos de Paz
de Daniel Filho
São Luiz 15 agosto 19:50
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Tempos de Paz se apresenta como o filme mais autoral da carreira de Daniel Filho, e comprova que o diretor é uma espécie de artesão, fazendo um trabalho menor, bem intencionado, humano, uma homenagem singela aos estrangeiros que tentaram construir uma nova vida num país outro, um libelo correto a favor da liberdade. Até aí creio que Tempos de Paz deve ser olhado com uma certa consideração, especialmente em se tratando de alguns preconceitos comuns que giram em torno da carreira de Daniel Filho. Mas o que mais me interessa em um filme como Tempos de Paz é a sua realização cinematográfica, dado que é uma adaptação de uma peça de teatro de Bosco Brasil, e o próprio filme se apresenta nitidamente como uma adaptação de uma peça teatral. Outro ponto que ratifica isso é que a própria peça tem uma metalinguagem clara, pois fala de um ator que conseguiu salvar a sua vida ganhando uma aposta: fazendo um torturador chorar diante de uma breve apresentação sua. O texto da peça tem um certo romantismo ingênuo, mas bonito, bonito mesmo, que defende ao final de seu percurso a possibilidade de a arte vencer as agruras da vida, ou ainda, a possibilidade da beleza da representação superar as dores da realidade, ou ainda, o bem vencer o mal pelas vias da arte. A questão é que Daniel Filho transformou a linguagem da peça para a linguagem cinematográfica de uma maneira simplória demais, deixando o filme com um olhar um tanto caricato, especialmente pelo tom que o diretor imprimiu aos atores, um tanto falsos, fora de uma representação realista, que dificulta o mergulho do espectador com um contexto real que o filme se baseia. Tento explicar melhor: a peça incide num dilema. De um lado, quer dar consciência ao espectador de um drama real: a tortura na segunda guerra mundial, a intolerância aos imigrantes, etc. De outro, a peça, com vimos, quer valorizar a arte, a representação, como possibilidade de suplantar a dor do viver. Esse equilíbrio dúbio, ambíguo, entre a consciência de uma realidade e a valorização da representação, pode ser resolvido no teatro de uma forma mais adequada do que no cinema, me parece (não vou aprofundar isso aqui). No cinema, de base realista (a ontologia baziniana da imagem fotográfica), a questão se torna complexa, profunda, e o tom entre o “realismo” e o “artifício” a ser impresso na obra passa a ser uma questão essencial, orgânica, da própria natureza última do cinema. Daniel Filho resolveu a questão optando por cenários realistas mas com uma representação falsa, ou seja, tudo o que é externo aos atores é realista (o espaço físico, a luz, os figurinos) e tudo o que envolve a parte humana, dentro deles, é artificiosa (p ex o tom caricatural dos atores). Ainda se complica o fato de aparecer o próprio Daniel Filho sendo o único ator com um tom realista, um tom sóbrio que se afasta dos “tiques e trejeitos teatrais e exagerados” típicos do tom em que os atores estão dirigidos. Desse contraste gera uma dúvida, pois se o filme acerta ao tentar humanizar esse torturador, mostrando os seus próprios dilemas, ele erra por caricaturizar de tal forma que torna tudo mais superficial, por amenizar os conflitos, descaracterizando sua natureza. Ou seja, ainda que bem intencionado e fiel ao espírito da obra de Bosco Brasil, Tempos de Paz pouco acrescenta em relação à adaptação de uma obra teatral para o cinema, e acrescenta menos ainda na possibilidade de mergulhar num texto tão rico, o que poderia ser possível se o diretor se preocupasse com “menos”, com atuações menos espalhafatosas e mais contidas.

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