Cine Alumbramento - agosto 2010

Pessoal,
seguem os textos que escrevi para o folheto crítico da última sessão do Cine Alumbramento... para quem não conhece, esse é um Cineclube que acontece na primeira segunda-feira de cada mês na Vila das Artes, e que exibe curtas cearenses, tendo um bate-papo com os realizadores após a exibição. E - uma coisa muito bacana - a distribuição de um folheto com críticas sobre os filmes exibidos.


Na Contramão, de Eudes Freitas

Eudes Freitas começou a se envolver com a realização audiovisual no Alpendre, mas seu trabalho acabou alcançando menor repercussão que os outros dois “meninos do Poço” – Marco Rudolf e Victor de Melo. Seu jeito tímido, de poucas palavras, o empurrou para trabalhos menores, e o posto de técnico do Núcleo de Produção Digital na Vila das Artes contribuiu por aprofundar essa situação. No entanto, seu trabalho merece ser melhor observado. Recentemente assisti a um curta que Eudes fotografou, Morpheu, de André Moura, e fiquei impressionado com a sutileza que Eudes imprimiu ao filme, especialmente nas cenas interiores, passadas no quarto do protagonista. Nessas breves oportunidades, Eudes mostra sua visão de mundo, para além das meias palavras. Na Contramão é o seu primeiro trabalho como diretor com uma maior estrutura de produção, contemplado no último edital da Secultfor, que comprova seu talento não só como fotógrafo mas também como realizador.

Podemos começar dizendo que Na Contramão é um trabalho abortado. Com isso, me refiro ao fato de que o projeto inicial do curta era realizar um documentário sobre um morador de rua no Centro da Cidade, com quem Eudes travou contato após uma tentativa de assalto. Não só Eudes não foi assaltado como acabou estabelecendo uma certa amizade com esse morador. Mas quando foi realizar seu curta, Eudes descobriu que ele havia sido assassinado. Talvez esse morador de rua fosse alguém com quem Eudes pudesse se identificar, pela sua marginalidade. A partir disso, Eudes e sua equipe vagaram pelas ruas do Centro à procura de um filme. Toda essa introdução se justifica quando percebemos que há uma presença fantasmagórica em todo o curta, uma procura incessante por algo que nunca será encontrado e uma tentativa humana de se posicionar diante disso.

Na Contramão é um filme duro com o espectador: não há um sentido de narratividade, as relações nunca se estabelecem, o Centro torna-se um espaço vazio, de portas fechadas. Para isso, são marcantes as escolhas de Eudes: filmar em preto-e-branco, à noite, estourando as luzes dos postes. Essas escolhas estéticas apontam para um projeto em continuidade com Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo, que também abandona seu projeto inicial (seu dispositivo) para se atirar ao encontro das impressões sensoriais trazidas pela Cidade. Mas ao contrário de Sábado, que buscava um esvaziamento do plano tanto na composição do quadro quanto no prolongamento da duração do plano, em Na Contramão, Eudes promove um outro esvaziamento, pela forma singular como estabelece seu distanciamento em relação às figuras sólidas que preenchem o plano. O quadro é preenchido ou por movimentos fugazes (carros, varredores, etc.) ou por grandes blocos maciços que preenchem o plano (outdoors, manequins, estátuas). Para tanto, ainda contribui o expressivo trabalho de edição de som de Marco Rudolf, que não se preocupa em simplesmente ilustrar o espaço, mas preenchê-lo de uma forma sempre inventiva, criando novas camadas de sentido.

Mas o que é notável em Na Contramão é que, se por um lado existe uma dor latente que percorre o filme, um sentido de abandono, há, por outro, todo um percurso em busca de uma beleza, ainda que frágil. Por trás de seu tom austero, é possível ver toda uma forma afetuosa de se relacionar com o espaço, o que o torna um olhar singular sobre os paradoxos do Centro da Cidade: um local abandonado mas ainda assim um ponto de encontro. Esse interstício entre um desejo de encontro e um ponto de fuga confere ao filme uma certa languidez, uma melancolia dura, uma desesperança rigorosa, como se esperasse um contracampo do olhar dos manequins que, aprisionados na vitrine de uma loja de departamentos, não podem responder, pois estão sem cabeça. São apenas um corpo, ou melhor, apenas um pedaço de plástico, abandonado no Centro de Fortaleza.



Fui à Guerra e Não Te Chamei, de Leonardo Moura Mateus, Roseane Morais e Luana Lacerda

Fui à Guerra e Não Te Chamei é fruto dos primeiros núcleos de produção do Curso de Cinema e Audiovisual da UFC, que teve seu início ainda neste ano de 2010. A cada período letivo, os alunos optam por um dos núcleos existentes – “Documentário”, “Ficção” e “Poéticas Contemporâneas” – realizando uma obra audiovisual orientados por professores do curso. Com isto, o curso da UFC já denota sua preocupação em alargar o horizonte da realização audiovisual, para além da dicotomia entre documentário e ficção. A terceira via, que geralmente é rotulada como o caminho do “experimental”, passa a ser chamada de “poéticas contemporâneas”. Leonardo Moura Mateus, Roseane Morais e Luana Lacerda foram os únicos alunos que se aventuraram pelo misterioso núcleo das “Poéticas Contemporâneas”, tendo sido orientados pelas Professoras Walmeri Ribeiro e Cristiana Parente.

Este vídeo conta com a imprescindível participação criativa dos atores-performers Andréia Pires e Daniel Pizamiglio. Recém-formados pelo Curso Técnico em Dança, o duo já havia encantado a todos na apresentação de seu trabalho de conclusão de curso – “Cavalos”, que contou com a participação de Leonardo MouraMateus. Ingressando no Curso de Cinema, Leonardo orquestrou uma proposta de vídeo extremamente integrada com o trabalho dos bailarinos. É exatamente essa comunhão entre o trabalho de direção e o de interpretação que confere ao vídeo sua brilhante organicidade.

Em Fui à Guerra e Não Te Chamei, Pires e Pizamiglio dão continuidade ao seu trabalho de criação, que se baseia em modulações entre o afeto e a violência, entre a poesia lúdica e o sarcasmo masoquista, entre o prazer e a dor. No entanto, essa tensão não é criada a partir de momentos estanques que meramente se sucedem, mas integrados no interior de cada movimento e na forma específica como um bailarino responde ao movimento do parceiro. Para tanto, baseiam-se num intenso trabalho de expressão corporal, em que a extenuação física ocupa o papel dos desafios dos limites da relação entre esse casal.

Este trabalho específico coloca todas essas questões em primeiro plano, simplificando seu mote inicial: uma briga de casal. Após separarem suas roupas (veremos mais tarde que na verdade tratam-se das armas de um duelo), o casal se enfrenta (isto é, frente a frente) atirando suas próprias roupas no parceiro. Se por um lado existe uma energia raivosa, por outro há uma certa ingenuidade, uma poesia que emana desses corpos como se estivessem fazendo amor. Trata-se de um ritual, um duelo ético, não muito distantes daqueles da época da cavalaria, em que um atira no outro partes de si, parte do que carregaram consigo dentro de suas malas, até que elas fiquem vazias, e sua fúria tenha se acalmado. Um ritual metafórico, metafísico, projeção do desejo, mas ao mesmo tempo um ritual realista, mediado pelos movimentos do corpo e pelos objetos físicos, que desferem golpes, punhaladas de amor inofensivas (às vezes nem tão inofensivas assim...).

Mas se de um lado há todo o trabalho corporal e de expressão pessoal dos bailarinos, por outro, há um desafio adicional: o de pensar essa “performance” para uma câmera, o de retratar esse universo através dos recursos da mise-en-scêne cinematográfica. E é aqui que as opções do vídeo se destacam pela sua inventividade. Após um início em que o processo de arrumar as malas é filmado em jump cuts necessariamente fragmentados, com momentos em que os atores falam e olham para a câmera, quebrando o ilusionismo clássico, o filme então vai para sua derradeira cena, em que o casal finalmente se enfrenta. Esse casal é filmado como se estivesse num palco do teatro, num grande plano geral que cobre o corpo inteiro dos dois atores, posicionados lateralmente à câmera. E mais: num único plano-sequência, sem movimento da câmera. Dessa forma, a princípio poderíamos ter a impressão de que se trata de um mero registro de uma performance. Mas existe uma diferença crucial: a cena se passa na área verde do Parque do Cocó. Essa simples escolha adiciona uma série de questões que se integram à proposta dos bailarinos: uma briga íntima que se passa num espaço público, o sol que ilumina e castiga o corpo dos atores, o espaço lúdico do verde do parque que insere camadas entre a ingenuidade, a poesia e a ironia (seria uma brincadeira de crianças?), e que, em última instância, provoca esse cruzamento de olhares entre a dança, a performance, o teatro e o cinema. Cruzamento maravilhoso, ambíguo, misterioso. Cruzamento simples. Vivo, porque vem da vida (quem não teve uma briga de casal? quem nunca se atirou na grama de um parque?). Como se não bastasse, nesse simples recurso, o vídeo dialoga com um certo cinema contemporâneo: o tom de humor naive e a floresta como espaço de libertação e de entrega aos sentidos do corpo caros ao cinema de Apichatpong, ou mesmo o diálogo ambíguo com o teatral na composição do cinematográfico, próprio de Manoel de Oliveira. Com isso, Fui à Guerra e Não Te Chamei consegue um equilíbrio muito raro, muito singular: sem deixar de ser extremamente respeitoso e integrado ao trabalho prévio dos bailarinos, transpõe esse conceito para o campo do cinematográfico.

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