revendo "clássicos": Fellini e Bergman

Vocês devem ter observado que ando com uma certa preguiça para escrever sobre filmes aqui neste blog. É verdade que tenho visto menos filmes, mas há algumas semanas em que uma única semana vi dez filmes, e não consegui escrever sobre um sequer. Mas aos poucos vamos tentando restabelecer a rotina e o rumo das coisas, já que este blog é acima de tudo um companheiro. Aproveitei para rever um conjunto de filmes “clássicos” que não os via há um bocado de tempo. Agora, como “professor”, estou tentando rever esses filmes para que eu possa dialogar com um certo sentimento de cinefilia que despertava em mim quando tinha meus dezoito anos, quando vi esses filmes pela primeira vez. Revi, nesse espírito, filmes como A Doce Vida e Oito e Meio, ou ainda, Persona e Gritos e Sussurros.

Dos quatro, o que mais me encantou foi sem sombra de dúvidas A Doce Vida. Acho esse filme um dos grandes filmes da história do cinema. Há várias coisas que me fascinam nesse filme. A primeira delas é a paixão de Fellini pelo ato de encenar, de filmar. É um filme sempre cheio de pessoas, cheio de movimento, cheio de tesão pelas circunstâncias práticas de filmagem, de decupar, de encenar, de dirigir atores, de pensar a arte, a montagem, etc. É um filme de produção nada trivial, cheio de sequências de festas exuberantes que Fellini resolve com grande maestria no que tange à encenação. Nesse filme de quase três horas de duração, claramente há várias cenas que poderiam ser cortadas, mas parece que Fellini não queria nunca parar de filmar, tamanha é sua paixão com a possibilidade de encená-las.

Acho A Doce Vida o filme mais maduro sobre “as dores e as delícias” de uma geração, e o fato de ter sido feito em 1960 mostra que Fellini é um visionário. A Doce Vida mostra a Itália recomposta do pós-guerra, num outro rumo cinematográfico em relação ao neo-realismo italiano mas ao mesmo tempo um certo desconforto com o rumo das coisas. O incrível do filme é a posição com que Fellini coloca o seu personagem, belamente composto por Marcello Mastroianni, uma posição de proximidade e distanciamento do rumo das coisas. Por um lado, Fellini vê com uma beleza as transformações sociais, culturais e sexuais de uma época, a agitação e o movimento das festas e dos encontros noturnos, uma diversão descompromissada, uma liberdade. Por outro lado, é claro como Fellini ao mesmo tempo demonstra uma consciência da futilidade, da superficialidade, da decadência dos novos-ricos e da classe média alta italiana, como esse mundo guarda em si inúmeras contradições. Para isso, Fellini escolheu observar de perto esse mundo através de um jornalista que circula por esse mundo de aparências e futilidades.

O personagem de Mastroianni não sabe bem o que quer, e nessa dúvida prefere viver o instante, o momento. Perde-se entre a bebida, as mulheres, o emprego, vê o tempo passar, e procura pelo menos se divertir com isso. O filme no entanto não tem um clima de denúncia crítica, ou um tom austero como os filmes de Visconti e Antonioni. Há um certo humor, há um charme e uma beleza nesse mundo de trivialidades. Isso faz com que o filme seja calorosamente humano, porque Fellini abraça as contradições, as dificuldades e as carências dos seus personagens. Não há vilões ou heróis. As pessoas têm dúvidas. As pessoas querem no fundo se esconder de si mesmas, não querem encarar de frente suas limitações, então preferem o mundo superficial das festas e da diversão do hoje.

Há uma enorme beleza em vários pequenos instantes de A Doce Vida. Acontece que esses momentos de beleza são sempre fugazes. O extraordinário título e a extraordinária sequência final (bela, fugaz) mostram que Fellini talvez tenha sido o cineasta que mais entendeu os desafios (e os fracassos) da sua geração, sabendo ver com generosidade e humanidade suas dificuldades. Ao mesmo tempo, o filme tem uma narrativa fragmentada, episódica, em que os eventos se sucedem de forma livre, compondo um painel ou um mosaico ricos, de forma que é possível pensar que esse filme representa para os anos sessenta em termos de narrativa o que Amantes Constantes é para o cinema contemporâneo, no sentido de observar os dilemas de uma geração através de um tempo que observa respeitosamente as dificuldades das pessoas e respira esse conviver através de uma narrativa mais relaxada e fragmentada. A diferença é que Fellini falava sobre o “hoje” enquanto Garrel fala de um evento mais de trinta anos depois (ou seja, não é profético).

Oito e Meio é um filme de enorme coerência dentro do cinema do Fellini, ratificando o autor como um dos mais importantes diretores europeus dos anos sessenta. A solidão, a futilidade de um mundo de aparências, o clima episódico, o tom de humor que tenta fazer mais palatável o indiscutível clima de melancolia, o personagem que “tem dúvidas e não sabe como agir”, o imenso tesão do diretor em encenar festas e eventos com diversas pessoas, tudo isso prossegue um projeto estético em continuidade com A Doce Vida. O que Oito e Meio se diferencia é um clima onírico, um fator pessoal (a memória), que complexifica ainda mais a narrativa fragmentada, um certo clima surrealista e fantástico, e, claro, a referência ao cinema, a dificuldade de fazer filmes pessoais respondendo a um certo modelo de produção. Oito e Meio precisa ser visto com O Desprezo, porque ambos tratam da mesma questão e feitos na mesma época: a dificuldade de um diretor fazer um filme dada uma certa estrutura de produção que o oprime. Eu prefiro o filme do Godard, porque O Desprezo marca uma posição, uma posição do autor, através de uma posição de mise-en-scene, uma ética do mundo. A posição de Godard é uma posição moral: o fracasso do personagem no mundo do cinema reflete seu fracasso diante do mundo, seu fracasso diante da possibilidade de amar. Fellini tem mais “jogo de cintura”, é mais “relaxado” que Godard: ele “vai levando”, amaciando os confrontos e conflitos. O personagem de Fellini vai sobrevivendo, driblando a si mesmo, de mentira em mentira, por trás de seus óculos escuros. Os personagens de Fellini não são pessoas adoráveis; eles acima de tudo tentam sobreviver, e isso é não é nada trivial, embora pareça. Para tanto, é preciso humor, é preciso “não levar tão a sério as coisas para que você não enlouqueça”. Eles tentam esquecer que sofrem, tentam não se perceber disso. Há uma enorme dor por trás disso mas ao mesmo tempo há uma certa beleza do mundo. O tom com que Fellini consegue exprimir isso é muitas vezes fascinante.

Já Bergman é muito mais fechado para o que o mundo pode nos oferecer e é curioso ver como esse projeto de cinema hoje me interessa pouco, e que me interessava muito há quinze anos atrás. Por incrível que pareça, Glauber e seus asseclas do cinema novo tinham muita razão quando diziam que o cinema de Bergman era um “cinema velho”, que representava um passo atrás em relação ao que o cinema moderno representava. Hoje eu consigo entender isso muito bem. Não é que não sejam ótimos filmes. Mas são filmes bem “mais velhos” que os do Fellini, por exemplo. Por que? Porque são filmes fechados para o mundo, são “comprovações de tese”, enquanto o cinema contemporâneo é exatamente composto de filmes que se abrem de forma tamanha para o mundo que são filmes-vida, são documentários.

Vou tentar explicar melhor. Persona e Gritos e Sussurros são filmes sobre o encapsulamento. São filmes sobre pessoas que se fecham da vida em locais de retiro, e o contato com as pessoas sempre gera dor e desentendimento. As pessoas não conseguem dizer uma palavra à outra. Até aí tudo bem. Acontece que o próprio Bergman também encapsula o seu cinema de algumas possibilidades, ele se fecha diante do seu próprio processo, que ele domina e conhece à perfeição. Mas se torna um artifício forçado e pesado, com enorme esforço para se sustentar. Falta leveza e graça. Hoje, penso que o melhor filme de Bergman seja Morangos Silvestres, quando ele procura fugir de um cinema mais “complexo” e difícil.

O que me interessa no cinema do Bergman são questões de encenação, que ele resolve bem. A estranhíssima introdução de Persona e a bela introdução de Gritos e Sussurros com os planos do jardim, até chegar ao interior da casa com um direção de arte falsa, que dá um clima de claustrofobia e decadência muito caro ao filme. A famosa sobreposição da imagem das duas mulheres, a “entrevista” filmada duas vezes em Persona. A belíssima cena em Persona em que a enfremeira conta à mulher o acontecimento na praia (ela simplesmente fala, e só). A enorme cena em Gritos e Sussurros em que a mulher sangra sua vagina para não transar com o marido, e diz “tudo é um bando de mentiras”. O lindo final de Gritos e Sussurros, a serenidade dessa imensa dor que é viver. A estranha quebra em Persona quando tudo sai de foco. Etc. Embora o projeto de cinema do Bergman hoje me enfase um pouco, é sempre inspirador ver seus filmes para pensar em questões de encenação. Sem dúvida, Bergman foi um grande diretor. Bergman deve ter sido um nobre aristocrata que se lamentava sobre o mundo em sua casa da ilha de Faro, entre dois goles de vinho. Viveu com dignidade, fez um grande número de belos filmes, teve grande reconhecimento ainda em vida, mas no fundo não se arriscou muito.

A beleza dos filmes do Bergman me incomoda, porque não raramente me soa falsa.

Comentários

Anônimo disse…
O que te soa falso deve ser a idéia de que o cinema é verdadeiro. Talvez você tenha sido melhor enganado pela noçao de realidade de Fellini que tampouco é realista, do que pela de
Bergmam. Mas se olhar com cuidado verá que são dois falseadores, mentirosos ( palavra usada como auto definição pelo proprio Fellini ) com imenso talento de iludir, e que a veracidade que Fellini trás no movimento e na fluidez, Bergman trás na densidade, como em gritos e sussurros, onde sommos carregados a um mundo estranho de desespero belo com as atrizes mais talentosas e bem dirigidas talvez, aí sim, da história do cinema.... Um aristocrata entre dois goles me parece um despeito de uma linhagem caduca, que primando pela verdade absoluta e pseudo marxista, pisa nas próprias raízes inventivas e inovadoras da arte do cinema, e faz questão de rotular tudo, taxativamete.

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