Gerry

Gerry
de Gus Van Sant
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Gerry, de Gus Van Sant, é um belo filme, que tive a oportunidade de revê-lo no curso de Linguagem e Crítica, que tenho o privilégio de dividir com a Beatriz Furtado, nas quartas de manhã no cinema da Casa Amarela. Depois de alguns filmes duvidosos, como um remake de Psicose, Gênio Indomável e Encontrando Forrester, Gus Van Sant resolveu dar uma guinada radical na sua carreira como cineasta. Deixou os blockbusters de Hollywood para embarcar num projeto autoral bastante radical, bancado por ele próprio e por mais dois “amigos” (Casey Affleck e Matt Damon, que também aceitaram rever seus papeis de “belos rostos” e embarcar nessa aventura). Lembramos a frase de Nicholas Ray que se um cineasta em Hollywood fizer um filme com um orçamento menor que o anterior, ele está arruinado. Gus Van Sant fez isso. Logo, seu filme é um caminho sem volta. Gerry começa com um longo plano de um carro numa estrada, e uma música – de ninguém menos que Arvo Part – como se fosse um canto lúgubre. Vemos um plano ponto de vista de uma estrada. Ali estão os três artífices desse filme, num olhar integrado: os personagens, o autor (o próprio van sant) e o espectador. Caminho esse que é dessa forma o próprio caminho de Van Sant em sua cinematografia, no interior de um cinema americano.

Ao (re)ver Gerry, não pude deixar de pensar nos descaminhos da própria civilização norte-americana, o da conquista do Oeste. O próprio cinema participou da construção de um ideário sobre esse caminho, através do western, o “cinema americano por execelência”. Lembramos os filmes do John Ford; lembramos um filme como Rio Vermelho, de Howard Hawks, em que um grupo tenta conduzir um rebanho de gado pelo interior americano, passando por uma travessia – épica e ética – física e espiritual. Essa conquista do espaço físico da civilização americana sempre foi baseada na domesticação de uma natureza selvagem, subjugada pelo Homem determinado. Lembramos um filme como Náufrago, em que Tom Hanks sozinho vence a força da natureza, assim como o fizera o heroico Robinson Cruzoé.

Em Gerry, essa apologia da vitória do Homem sobre a Natureza, ápice do processo civilizatório, é virada pelo acesso por Gus Van Sant, o que nos leva a pensar que o filme basicamente coloca a questão: quais foram os legados da “civilização” para os jovens americanos de hoje? Em Gerry, dois jovens amigos se perdem num deserto. Um passeio turístico acaba assumindo proporções cada vez mais desesperadoras para esses dois amigos indefesos, diante do vigor da natureza. Vêem-se pequenos diante da imensidão do mundo, e precisam assumir seus limites e sua incapacidade de lidar com as tarefas básicas da sobrevivência: a busca por comida e água. São meros patetas indefesos, sem a redoma de defesa dos processos civilizatórios. Começam a perder-se cada vez mais. Quanto mais se perdem, mais adquirem a consciência de sua pequenez e da fragilidade de sua condição humana. É impressionante uma cena em que um dos personagens tenta pular de uma pedra: um plano-sequência, sem cortes, desvela o absurdo praticamente cômico dessa situação. A beleza dessa sequência existe exatamente por ela acontecer sem corte e em plano geral, quando percebemos o abismo entre os dois amigos, ou ainda, entre eles e o mundo. O que só nos lembra a famosa frase de Bazin sobre o cinema de Chaplin, de como o efeito cômico de Chaplin na jaula do leão só faz sentido pelo fato de sê-lo num plano sem cortes.

No entanto, para Gus Van Sant, os personagens não existem essencialmente como uma psicologia, mas principalmente por suas ações físicas, por seu deslocamento em relação à geografia física local. Por isso, em todo o filme, os personagens simplesmente caminham, movimentam-se através de longos planos de caminhadas, até que o corpo se transforme, fatigado pelo andar sem fim. Ao final, arrastam-se como múmias, quase como se fossem personagens do expressionismo alemão, numa nuvem de inércia e pesar.

À medida que os personagens vão se perdendo, a própria narrativa de Gus Van Sant vai se esgarçando, os personagens vão perdendo o foco de sua caminhada, até que o espaço físico assume o posto de protagonista do filme, e o filme desconstrua de vez seu fio de narrativa para transformar-se, cada vez mais, em planos que primam por despertar no espectador um sentido sensorial plástico, que o insiram num outro registro de sensibilidade em relação ao espaço e ao tempo, como se oferecessem uma espécie de névoa de suspensão, com um novo trabalho sobre as cores, sobre o foco, sobre a relação entre o primeiro plano e o fundo, borrando ou indefinindo as distâncias temporais ou espaciais entre os próprios planos. Esse recurso se intensifica a partir de dois planos extremamente significativos, em que a câmera realiza um movimento de 360◦ : o primeiro, em torno de um dos personagens,e o outro, perscrutando a própria natureza física do local, que assume uma presença onipresente, quase assustadora. A partir de então, Gerry vai progessivamente se aproximando de um delírio visual, rompendo de vez seu esboço de narratividade.

Ainda assim, em Gerry tudo é planejado antecipadamente, com uma rígida decupagem. Ou seja, Gus Van Sant não arrisca se perder com os personagens, como por exemplo Miguel Gomes irá fazer em Aquele Querido Mês de Agosto. Há um certo formalismo que privilegia as composições geométricas, os jogos de luz, a decupagem rigorosa. Um diálogo com um cinema de Bela Tarr (a quem van Sant inclusive agradece nos créditos finais) e com os primeiros filmes de Phillipe Garrel, em especial A Cicatriz Interior. Tudo é do domínio da ficção: não há um olhar do documentário, de improviso, de limite tênue entre cinema e vida: os personagens irão se perder e a narrativa irá se desconstruir exatamente da forma, quando e onde o diretor previamente já havia pré-programado, sem surpresas. Ou ainda, o filme não se deixa perder durante seu próprio processo de confecção: nesse sentido ele se desenvolve num método mais próximo ao cinema clássico. É o passo que van Sant pôde realizar!

Em seguida, Gus Van Sant irá prosseguir em seu “caminho sem volta”, realizando uma série de trabalhos notáveis como reflexões dos rumos de uma juventude norte-americana: Elefante, Últimos Dias, Paranoid Park. Gerry, antecipando esses novos rumos, não deixa de ser um filme preocupado com uma juventude: não apenas por ser um filme com jovens, sobre jovens, mas essencialmente em se indagar sobre as possibilidades de mostrar a solidão e o despreparo do jovem contemporâneo norte-americano por meio de uma linguagem muito peculiar, que valoriza os momentos, os fragmentos e as impressões, ao invés dos percursos psicológicos ou dos filmes-painel. Gerry, acima de tudo, representa uma guinada radical, um caminho sem volta, que ao mesmo tempo é simplesmente o começo de um caminho, em direção de uma nova filmografia, de um dos mais coerentes cineastas do cinema norte-americano do novo século.

Comentários

Rodrigo disse…
Gerry eu vi uma só vez, há uns dois, três ou quatro anos atrás, no computador, não lembro em que formato, mas é o que até hoje, ao menos em memória, permaneceu com maior apreço em comparação aos sucessores (Elephant, Last Days, Paranoid Park) e talvez menos pelo projeto de decupagem/direção do Van Sant, ou até apesar disso, e mais por alguns momentos pontuais do filme, na verdade um especialmente que ficou marcado pelo aspecto técnico do plano seqüência em que os dois seguem caminhando enquanto a noite vira dia, aquela luz da aurora, o resultado do que se operou ali e que foi mais marcante pra mim, na época. Mas tenho que rever.

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