Tiradentes (II): quatro mundos

Os Residentes, de Tiago Mata Machado
Os Monstros, dos Irmãos Pretti e Primos Parente
Vigias, de Marcelo Lordello
O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges


Neste texto, pretendo tocar em alguns pontos colocados por quatro filmes desta Mostra de Tiradentes. São questões basicamente relativas às opções desses filmes em encenar seus personagens e as repercussões dessas opções. Curiosamente tratam-se de duas ficções e dois documentários, mas cada vez mais percebemos que o conceito de gênero vem se estilhaçando no cinema contemporâneo, até o ponto em que tal distinção não faz mais tanto sentido. Os Residentes e Os Monstros – dois filmes de dramaturgia tipicamente ficcional – são filmes em que os atores também são autores e que dessa forma o próprio processo de construção dos personagens se mescla à tessitura da obra enquanto dramaturgia. No caso de Os Monstros, os atores-autores são os diretores do próprio filme: o diálogo direto é entre os quatro realizadores. Já em Os Residentes há um diretor-títere que é um outro, que administra a criação dos atores-autores não somente no ato em si da filmagem mas essencialmente na montagem, selecionando o que deixar e o que retirar dessas participações – o que parece ter gerado muitas tensões, quando os atores viram o filme finalizado e este não necessariamente tenha preenchido suas expectativas diante do processo de filmagem.

Os Monstros e Os Residentes são dois filmes sobre atores-autores que querem fazer a revolução. No entanto, a estratégia de ambos os filmes é bem diferente. No filme de Mata Machado, a única saída para a revolução é a guerra. “Viver a vida” passa a ser “viver a guerra”, ou ainda, “viver em guerra”. Para isso, Thiago sentiu ser necessário instalar um verdadeiro clima de guerra no próprio set de filmagens, relatado pelo diretor nos próprios debates em Tiradentes: atores exauridos física e emocionalmente. Enquanto Os Residentes são um soco, Os Monstros são um abraço. Os Monstros possuem um tom singular porque evoca toda a fragilidade de um grupo. Tudo já é por demais difícil, então se houver um clima de guerra, parece que tudo pode se desfazer. É preciso se ajudar: juntos esse grupo possa talvez sobreviver com força e dignidade. A força de Os Monstros surge de uma necessidade de acalento diante do desamparo. Em Os Residentes, é preciso dizer tudo, ir além; Os Monstros valoriza o não-dito, o aquém da imagem. Ou ainda, em Os Residentes a imagem nos diz tudo; em Os Monstros a imagem ilude, ela esconde. Nos Residentes os personagens dizem através do texto; em Os Monstros, através da música.

Mas o que pretendo apontar essencialmente é que essas diferenças também se revelam a partir de um modo de produção. Animosidade em Os Residentes; afetividade em Os Monstros. Ou seja, o próprio processo de realização já revela a essência das estratégias dos dois filmes em relação a como abraçam seus personagens. São filmes sobre a dor e a delícia de estar juntos.

Vigias, de Marcelo Lordello, é um filme extremamente solitário, pois trata de guardas de condomínios de Recife. Trata do tempo e da liberdade. Os vigias simplesmente esperam, por algo que possa acontecer, e pelo amanhecer do dia. Enquanto o tempo trancorre (saber viver a noite), eles existem. Os vigias perdem sua liberdade para proteger a liberdade de seus clientes, apesar de seus clientes serem tão ou mais encarcerados que os vigias. Desse modo, Vigias é sobre um imenso contracampo: o contracampo dos proprietários dos apartamentos dos prédios (que nunca vemos) e o contracampo da própria cidade de Recife (que nunca vemos em si). Assim, Vigias também é um filme sobre o olhar. Os vigias olham; enquanto olham, existem.

Mas esses elementos estão mais propriamente no campo das intenções do que no da realização. Essencialmente a grande contribuição de encenação de Vigias está na sua sobriedade, na sua recusa do espetáculo. Os vigias não são engraçadinhos, não falam de futebol nem citam casos mexeriqueiros sobre os moradores. Vigias não está interessado pela intimidade de seus personagens (ou seja, não é um filme à la Coutinho sobre esse universo...). A comparação pode ser feita com Domésticas, de Fernando Meireles e Nando Olival, até mesmo a partir do próprio título, que busca um certo panorama de uma classe, que se apresenta a partir do seu local de trabalho. Mas enquanto Domésticas era uma ficção que mostrava as domésticas como seres pitorescos, fazendo galhofas com seu mau gosto, sua aparência brega e seu anacronismo, Vigias é um documentário sóbrio que dá uma dignidade a seus personagens por conta do respeito ao seu local de trabalho e ao mesmo tempo sua consciência das limitações da engrenagem a que eles servem.

Vigias aponta para seu processo de realização em inúmeras vezes, especialmente para o trabalho de enquadramento de Ivo Lopes Araújo, que já pode ser considerado o grande fotógrafo dessa nova geração. Nesses constantes reenquadramentos, quase como um copião de si mesmo, Vigias aponta para o difícil processo de encontrar uma distância que pareça justa dos realizadores em relação a seus personagens.

Mas enquanto Vigias o tempo todo mostra a dificuldade de tentar encontrar essa distância justa, O Céu Sobre os Ombros simplesmente encontra. E por isso é muito curioso que ambos os filmes tenham sido fotografados pelo Ivo. Uma boa forma de falar sobre a diferença entre os dois filmes é que, enquanto Vigias é um filme noturno, O Céu é um filme de penumbra. Vou tentar falar em outro texto como O Céu Sobre os Ombros, como o próprio título coloca, é um milagre, pois equilibra de uma forma leve uma estrutura extremamente sólida. O Céu também é um filme sobre a solidão, mas acontece que esses personagens aceitam a si mesmos, com toda a dificuldade que esse movimento implica. Eles se aceitam nas suas estranhezas, nos seus dilemas, nos seus paradoxos. Com tudo. Enquanto Vigias evita o tempo todo alcançar a intimidade de seus personagens, com uma distância extremamente respeitosa, O Céu abraça a intimidade de seus personagens, pois é tudo o que se tem. No entanto esse abraço é extremamente delicado, porque parece que se abraçar muito tudo pode desmontar, de tão frágil. É preciso abraçar sem tocar. Abraçar com um olhar (o olhar como um gesto). (Como eu falei uma vez sobre Não Amarás, a relação da equipe com os personagens é mais delicada do que se eles fizessem amor.) Assim como Os Monstros, O Céu só é possível porque uma equipe abraçou de forma muito delicada a fragilidade de seus personagens (de novo, a grosso modo: o modo de produção também é mise-en-scène). Mesmo solitários, esses personagens se tocam de alguma forma, pelo gesto de Sérgio Borges e equipe. Tudo está no não-dito, no extracampo. Se Os Residentes é um filme sobre o “campo” (o “em quadro”), e Vigias, um filme sobre o contracampo, O Céu é sobre o extracampo. Ou ainda, se em Os Residentes é preciso dizer mais, preencher a mise-en-scène com texturas, camadas e signos visuais, O Céu é um filme de contenção: é preciso menos para dizer mais. Se Os Monstros aprofundam uma frase do Ythaca, “do sublime ao patético basta um passo”, em O Céu parece que essa dualidade não é mais necessária. Equilibrar-se sobre o fio da navalha, na corda bamba, por um fio de cabelo, mas sem falar da proximidade do abismo. É como se não existisse abismo, não há “risco”, apenas o caminho e a convicção de seguir pelo rumo certo. Caminha-se levemente, docemente, de forma zen, como se não percebesse que tudo ao seu lado está prestes a desabar, que um centímetro mal calculado tudo pode desabar. (como se não percebesse, mas é claro que se sabe: O Céu pode ser tudo menos ingênuo...). Não há risco (parênteses meu: nem mesmo o tal “risco do real”...), pois não se aponta para a iminência da queda, apenas a leveza do caminhar (O Céu = filme zen). Enquanto Os Monstros ainda possuem uma grande necessidade de apontar que se caminha à beira do abismo (o abismo está todo lá no filme), em O Céu somente se segue – o caminho é mais importante que o abismo. Caminha-se leve pois não existe peso sobre os ombros do Serginho. Apenas o céu. É essa a extraordinária contribuição desse filme.

Comentários

Caramba Ikeda... belíssimo, sensato e muito sagaz o texto!
Fez conexões muito sensíveis e precisas e todas elas fizeram muito sentido pra mim, compactuam sobre o que gostaria de expressar...
Parabéns, abraços, Carol Oliveira.

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