Tiradentes (IV): A Dama do Peixoto

A DAMA DO PEIXOTO, de Douglas Soares e Allan Ribeiro

Como se passava numa praça, a primeira exibição de A DAMA DO PEIXOTO, de Douglas Soares e Allan Ribeiro, ocorreu na praça principal da cidade de Tiradentes. Associação curiosa mas que talvez tenha tirado a possibilidade de o curta ter sido melhor apreciado entre o “público especializado” que comparecia em peso no cine-tenda para assistir às sessões da Mostra Foco e do Panorama. Independentemente de onde tenha sido exibido, no entanto, as qualidades do curta, um dos mais interessantes de toda a programação de curtas da Mostra, são evidentes.

A DAMA DO PEIXOTO me parece um projeto com vários paralelos com o curta anterior de Douglas Soares – MINHA TIA, MEU PRIMO – pelo qual nutro uma enorme admiração (ver aqui). Esses paralelos vêm no sentido de que este curta tem diversos pontos em comum e diferenças em relação ao anterior.

Os dois curtas surgem de uma ideia central de retratar uma pessoa comum. Em MINHA TIA, MEU PRIMO um enorme sentimento de afetividade surgia pela frontalidade e pela intimidade com que Douglas conversava com sua irreverente tia, dentro de seu apartamento, esperando o tempo passar. Mas ao final continuamos sem saber muito bem quem é essa tia. Uma câmera na mão e com a voz do próprio diretor insere recursos de um cinema caseiro, precário.

A DAMA DO PEIXOTO a princípio nos parece um filme muito diferente. Temos lá também uma certa obsessão por uma personagem principal exótica, mas ao contrário do curta anterior, ela não aparece no filme, apesar de o tempo todo estar lá. Da mesma forma, ao invés do claustrofóbico apartamento, A DAMA é filmado numa praça, em céu aberto, com o movimento das pessoas. Dessa vez, a personagem não emite uma única palavra: temos apenas impressões de quem é ela através de depoimentos das pessoas que frequentam a praça. Ao contrário de MINHA TIA, A DAMA não assume a aparência de um filme caseiro, mas possui uma decupagem sofisticada, recortando o corpo da dama e partes da praça, evocando o extracampo, com quase todos os planos de câmera parada.

No entanto, apesar de todas as diferenças de linguagem, saio com a impressão de que A DAMA é uma refilmagem de MINHA TIA, MEU PRIMO. Porque as principais preocupações de Douglas continuam lá: um olhar leve e bem-humorado sobre uma personagem exótica, mas que ao final esconde mais do que revela. E se não está enclausurada no apartamento, dessa vez é como se a personagem estivesse enclausurada dentro do próprio enquadramento, ou ainda, dentro da própria praça, que funciona como uma espécie de casa para essa mulher (nos termos que me interessam, comuns ao meu próprio trabalho, A DAMA DO PEIXOTO não deixa de ser um filme sobre como enquadrar, através de uma distância, a intimidade de uma personagem que vive trancafiada num quarto). Ou seja, ela fala a partir do seu silêncio, a partir de seu deslocamento, traduzido através de um olhar para o enquadramento. A sabedoria com que o filme costura as imagens recortadas com os sons comprova o amadurecimento de Douglas, auxiliado por Alan Ribeiro, cujos curtas-metragens cada vez mais são exemplos de uma crescente sobriedade. A DAMA DO PEIXOTO tem o mesmo clima levemente suburbano (apesar de não ser passado no subúrbio, mas isso pouco importa...) de BOCA A BOCA, primeiro curta de Allan Ribeiro. No entanto, as opções de decupagem, a criatividade no olhar documental comprovam o caminho de amadurecimento dos dois realizadores.

São filmes tipicamente cariocas, mas sem o ranço “espertinho” ou “deslumbrado” do típico cinema local. Curtas que articulam com sabedoria uma ideia de “popular” com um claro refinamento estilístico.

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