CARTAS AO CEARÁ

Num momento em que Tropa de Elite 2 bate todos os recordes de público do cinema brasileiro, e num momento em que os festivais no Brasil florescem e dão suporte ao surgimento dessa bela nova cena de um cinema brasileiro contemporâneo, tenho a necessidade de fazer filmes para poucos, que circulem pouco, o menos possível. Diminuir o número de pessoas a quem se destinam os filmes e restringir seu circuito de circulação. Com uma pequena câmera e uma pequena ilha de edição, posso fazer pequenas obras audiovisuais que não sejam um produto, uma mercadoria, que circula num mercado, em busca de uma formação de preço, em busca de uma vitrine que irá legitimar sua produção, encontrar o “seu valor”. Essas obras audiovisuais podem ser, ao contrário, singelos sinais de amizade, simples gestos de amor, breves mensagens colocadas dentro de garrafas e jogadas ao mar.

Por isso, fiquei com vontade de fazer diversas cartas audiovisuais e mandar para os meus amigos. O “circuito de difusão” da obra seria esse: mandar pelo correio o DVD com o filme para três ou quatro pessoas. Encontrei o formato da carta como um formato que me oferecia muitas possibilidades, pois uma carta é sempre um face-a-face: quem escreve uma carta, fala para o destinatário, mas acaba inevitavelmente falando também para si mesmo. Uma carta é sempre uma tentativa de comunicação, uma abertura para o mundo, uma abertura de si para o outro. Ao mesmo tempo, toda carta traz consigo uma inevitável ideia de saudade e distância. Escrevemos uma carta porque, por um motivo ou outro, não podemos estar junto, não podemos estar perto do outro. A carta supriria essa saudade ou essa distância. Uma distância física que se transforma em uma distância íntima. Essa “geografia emocional” baseada na distância e na proximidade (uma tentativa de comunicação, um diálogo de uma intimidade) em muito me interessam, pois acredito que todos os meus filmes até então foram baseados exatamente nisso.

Essas cartas no entanto não seriam meramente confessionais ou meramente descritivas de uma rotina. Com isso, quero dizer que procurei nessas cartas travar um diálogo sutil que pudesse mostrar a mim mesmo e a minha rotina não como mera descrição (uma narração em voz-over que ilustrasse imagens, como se fosse uma carta escrita), mas sim através de uma escrita não literária mas cinematográfica, a partir de uma articulação entre imagens e sons. Essas cartas não seriam portanto diálogos diretos para as pessoas (“Luiz, estou triste porque meu trabalho é um saco, mas quando saí no final de semana e vi umas pombas brancas no solo, pensei em como nossa liberdade é fugidia, e acabei inevitavelmente lembrando do Five do Kiarostami, e fiz essas imagens pensando em vocês aí do Ceará que sabem viver esse momento único de felicidade e liberdade através de uma atitude afirmativa de estar no mundo e criar a partir disso.”). Ao contrário, o desafio é transformar esse pensamento mesmo não com palavras (literatura) mas por meio do cinema. Sem querer explicar, mas apenas dividir, compartilhar. Ou seja, as cartas nascem de uma necessidade não de descrever ou de explicar os meus dias, mas de compartilhar algumas reflexões que nascem dessa distância, e a partir dessas imagens (e desses sons) promover uma tentativa de reaproximação, como se o cinema pudesse talvez reduzir a distância e a saudade por meio de uma abertura para o mundo e para o outro.

Por isso, para mim é muito significativa a escolha de serem todas cartas “para o Ceará”. Um lugar distante de mim (culturalmente, geograficamente) mas ao mesmo tempo muito próximo, muito íntimo, porque lá tenho amigos e porque lá desabrocha um sentimento para a vida e para a criação que muito me interessam. Mas estou do “lado de cá”, no Rio, observando isso à distância, com saudade das conversas e dos dias que estive lá. Desse modo, essas Cartas ao Ceará mostram, acima de tudo, através de sua atitude libertária no ato de filmar, montar e enviar essas obras finalizadas, um desejo de estar próximo, um desejo de cruzar essa fronteira “do lado de cá” para o “lado de lá”.

Por isso, acho muito bonito o fato de essa série ter terminado simplesmente porque consegui atravessar essa fronteira, indo morar no Ceará. Hoje não preciso mais mandar cartas; eu encontro com as pessoas. Acontece que algumas dessas pessoas, por circunstâncias do destino, não estão morando mais no Ceará. Ou ainda, acontece que eu gostaria de mandar mensagens para alguns amigos do Rio, como se fosse um sinal de que sinto saudades mas de como é importante ter atravessado essa fronteira.

Assim, uma coisa que muito me emociona é a possibilidade de transformar essa série de “cartas AO Ceará” em “cartas DO Ceará”. A própria possibilidade de fazê-lo mais do que justifica toda a minha energia envolvida nelas. Percebam que não são “cartas ao Rio”, mas sim “cartas do Ceará”.

Sim, mas isso não responde ao essencial: por que mostrar essas cartas para outras pessoas, além daquelas a quem as cartas a princípio se destinam? Na verdade, não sei bem responder a essa pergunta. Acho que no fundo é esse desejo que nos move como criadores: é a diferença da carta para a literatura, ou o porquê de resolvermos tirar os nossos escritos da gaveta e publicá-los em algum lugar outro, ou mesmo mostrar para alguém. Queremos mostrar talvez para sermos compreendidos, ou simplesmente para nos sentirmos menos sós. Depois de um primeiro ciclo, mandando as cartas para os respectivos destinatários, me sinto pronto para que agora, algum tempo depois, eu possa dividi-las com um outro pequeno conjunto de pessoas que por ventura se interessem no que elas têm a dizer.

Exibir essa série de cartas na Mostra do Filme Livre para mim adquire um significado muito especial, pois foi nessa sala de vídeo em que passei vários dos meus vídeos caseiros, e a minha trilogia de longas esquecida. Acho que aqui é o lugar perfeito para acolher esse projeto tão singular.


CARTAS AO CEARÁ #02
(MiniDV, 2009, 11’)
Naquela fria noite em minha casa, me lembrei de alguns de vocês. Estava só e me aqueci com uma canção, enquanto dormia.

CARTAS AO CEARÁ #03
(MiniDV, 2009, 9’)
Quando estive em Muniz Freire, me lembrei de alguns de vocês. Dois caminhos.

CARTAS AO CEARÁ #04
(MiniDV, 2009, 9’)
Quando estive em Parati, me lembrei de alguns de vocês. Entre os cachorros e os pombos, um olhar. Filmar é escolher. Deixar de fora. Como a vida.

CARTAS AO CEARÁ #05
(MiniDV, 2009, 2’)
Quando estive em Parati, me lembrei de alguns de vocês. E do Five do Kiarostami.

CARTAS AO CEARÁ #06
(MiniDV, 2009, 9’)
Na Taíba, me lembrei de vocês. Somos pequenos diante do mundo, mas somos.

CARTA DO CEARÁ
(MiniDV, 2011, 9’)
Quando saí de lá, me lembrei de vocês e deixei uma janela aberta. Uma despedida.

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