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Há uma coisa que muito me interessa nos filmes do Jonas Mekas que é sua ideia de fazer não filmes acabados, mas rascunhos, esboços, de uma obra que nunca virá a ser, mas que a própria obra é esse eterno percurso do vir-a-ser, e que os garranchos ou rasuras fazem parte desse processo incompleto de viver a vida. Nos filmes do Woody Allen, há também percurso semelhante, embora as diferenças entre os dois autores sejam gritantes, a principal delas eu diria que é essa vocação para o cinema narrativo de franco diálogo com o público, que sempre foi a vocação de Allen, visto que ele começou fazendo stand up comedy, e o Mekas começou dialogando com o cinema vanguardista em 16mm novaiorquino (aliás, curiosamente ambos em Nova Iorque!). Nos filmes do Allen, há sempre um escritor que não consegue acabar seu livro, e acaba – por pressões eu diria a princípio “da sociedade” mas que no fundo são os limites dele mesmo... – fazendo coisas de que gosta menos, como séries para TV ou roteiros para cinema. Esse é o próprio Allen, tentando acabar “seu primeiro filme”, e nunca conseguindo! Ao mesmo tempo, à medida em que tenta “acabar o seu primeiro filme”, ele constrói uma obra coerente, digna e pessoal sobre esse seu próprio percurso de sua incapacidade de fazer o filme de que profundamente gostaria e nesse entremeio acaba fazendo os filmes possíveis, acaba andando pelas ruas, encontrando pessoas, se apaixonando e vivendo. Há desse modo sempre algo frustrante quando acabamos de ver um filme de Woody Allen, mas ao mesmo tempo sempre há algo profundamente apaixonante, que é o fato de que talvez ele não consiga “fazer o filme de que tanto gostaria” porque a vida, o mundo, as pessoas e os amores o distraem. Os filmes de Allen são como os filmes do Mekas, num certo sentido, porque ambos têm algo de incompleto, e apontam para as maravilhas do mundo, e que o processo de criação acaba se confundindo com o próprio ato de viver.

Meia-Noite em Paris foi lançado nos cinemas mais de trinta anos depois de Manhattan. Nos dois filmes, a cidade, o espaço físico é personagem marcante, mas nos filmes “globalizados” de Allen – fruto das film comissions e da constatação de que seu cinema vai melhor na Europa do que nos Estados Unidos – perde-se a referência de Allen como produto específico de uma cultura novaiorquina, como se seu cinema estivesse atrelado a isso. Os dois filmes começam com uma espécie de prólogo com planos da cidade, que dura cerca de cinco minutos. Em Manhattan, há uma fotografia preto-e-branco e uma narração de um escritor (escritor, e não roteirista, já que a voz fala em “capítulo 1” e não “sequência 1”) que tenta começar o seu livro, e, num monólogo interior, repete possíveis começos até encontrar um, e o filme avança, de forma inquieta, atropelada, apressada, instintiva, urgente, como toda a filmografia desse diretor que realizou um filme por ano nos últimos quarenta anos. Manhattan começa quase como uma “sinfonia de uma cidade”, os filmes dos anos vinte: passando dos primeiros planos rigorosos dos céus enquadrados entre os arranha-céus, aos poucos a montagem fica mais acelerada, mostrando os carros, as pessoas, o caos de uma grande megalópole como Nova Iorque. A própria narração lista uma oscilação entre um amor e ódio de Nova Iorque, uma relação afetiva com a cidade, e ao mesmo tempo uma insatisfação de como a cidade reflete o caos da vida urbana atual. A narração explica e as imagens ilustram esse sentimento dúbio, que é o centro de todo o filme, a postura ambígua do próprio Woody Allen em se relacionar de forma direta, apaixonada e humana com as pessoas e com o mundo e o seu jeito blasé de tentar rejeitar tudo isso. Em Meia-Noite em Paris, realizado mais de trinta anos depois, todas essas questões estão na extraordinária sequência de abertura do filme, mas nada “é dado”, tudo é “subentendido”: o fato de que Paris é uma cidade inteligente, charmosa e que ao mesmo tempo a cidade virou um pastiche de si mesmo, uma banalização de sua suposta sofisticação. A essência de ser dessa cidade reflete intimamente o próprio dilema desse personagem, dividido entre o desejo de ser ele mesmo e sua vontade de se refugiar de um mundo cada vez mais fútil. Acontece que Allen mostra todas essas questões – que basicamente são as mesmas do início de Manhattan e ao mesmo tempo outras – de uma forma completamente diferente: com planos uniformes, basicamente descritivos, “planos de paisagens”, apenas mostrando e deixando que o espectador entre no filme simplesmente através daqueles espaços, e os planos nos dizem tudo mas só eles e nada mais (isto é, o dizem de uma forma subentendida, um “falso cristalino”). Um começo rigoroso mas apaixonado. As diferenças e semelhanças entre o início de Manhattan e Meia-Noite em Paris sinalizam muitas das intenções do recente cinema de Allen, completamente obcecado em “prosseguir repetindo-se”, em “mudar para continuar o mesmo”, em “permanecer o mesmo mas sempre se modificando”, em “repetir para avançar”.

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