Nesse corre-corre da vida, não consegui escrever aqui sobre diversos filmes interessantes que vi neste mês. A primeira coisa é a chamada “Nova Escola de Berlim”: vi uns dez ou quinze filme do cinema alemão deste século e achei surpreendentemente interessante, um cinema jovem, sobre relacionamentos, e que possuem diversas semelhanças estilísticas entre eles. Como esses filmes não passaram com destaque em Cannes ou mesmo na competitiva de Berlim, ficam fora das grandes coberturas críticas, o que só assinala a miopia da crítica para com o cinema em geral, porque esses filmes são bastante interessantes e merecem ser vistos, dado o cenário do cinema contemporâneo. Fora o nome do Petzold, que é o mais conhecido. Entre esse conjunto de filmes, destaco alguns que me impressionaram muito: Bungalow (Ulrich Kohler), Madonnen (Maria Speth), Klassenfahrt (Henner Winckler), Der Schone Tag (Thomas Arslen). Desses, o que mais me impressionou foi o filme do Kohler, embora o filme seguinte dele não ter me pegado tanto. Klassenfahrt é talvez o “menor” deles, mas de todos foi o filme que mais ficou comigo depois de um tempo, sua sutileza ao abordar o universo jovem é desconcertante. Espero retornar a esse conjunto de filmes depois de minha viagem. E fico assustado como um filme como MADONNEN não se torna conhecido no Brasil.

Outros filmes que me encantaram em muito foram alguns filmes do Hou Hsiao Hsien de sua fase dos anos oitenta, antes do “cinema intelectual” de O Mestre das Marionetes em diante. Desses, vi apenas dois, mas que já me marcaram muito: Poeira no Vento e Um verão na casa do vovô. Os dois filmes trabalham uma oscilação entre a cidade e o campo que a princípio parece dicotômica, mas uma visão atenta mostra que existem muito mais nuances do que um enfoque meramente saudosista e bucólico do interior. Um verão na casa do vovô parece um filme mais tradicional sobre um neto que vai para a casa do avô no campo mas HHH é realmente um mestre porque, revendo o filme e pensando um pouco mais, percebemos claramente as sutilezas de sua construção fílmica, a maestria das opções de encenação e a brilhante teia das relações interpessoais que vai se desvelando de forma nada trivial. São dois filmes que vão crescendo dentro da gente. Poeira no vento é sem dúvida mais maduro, já com algumas elipses decisivas que antecipam o cinema posterior de HHH. Um filme delicado mas ao mesmo tempo duro; um filme humano mas ao mesmo tempo histórico. Poeira no vento é mais delicado que os filmes posteriores de HHH. Sinto que só em Café Lumière que HHH retorna a esse cinema: CL é quase um diálogo com PV só que ao avesso. Precisaria desenvolver mais. Quero ver mais uns dois ou três filmes dessa época para falar mais. E os filmes de Hou devem ser vistos sem pressa, e gosto de caminhar depois de tê-los visto, para que eles possam “fazer digestão”.

Vi também mais de um filme de Frammartino, Mario Bava, Georges Franju e Kon Ichikawa, diretores absolutamente diferentes, mas é sempre muito interessante ver de uma tacada só dois filmes de um mesmo diretor e ficar fazendo relações sobre eles. Dois filmes de Ichikawa – A Harpa da Birmânia e Fogo na Planície – dois filmes que queria ter visto há muito tempo, mexeram muito comigo, especialmente por eu tê-los visto nessa ordem. Se gostei muito de A Harpa da Birmânia, de seu tom humanista, da valorização do espaço físico e do tempo ao observar a guerra de um ponto de vista inusitado, esse filme me pareceu datado e absolutamente romanesco em relação com o duríssimo Fogo na Planície, que, de cara, considero um dos grandes filmes do cinema japonês, um daqueles filmes que apenas o cinema japonês poderia ter feito. Um dos mais duros filmes já feitos sobre a guerra. Quase em contraposição com o humanismo ingênuo de A Harpa da Birmânia (a necessidade do dever, de “enterrar os mortos”), Fogo na Planície mostra o absurdo da guerra visto de dentro, a partir da deambulação sem fim de um dos soldados simplesmente para se manter vivo, como uma travessia – nada épica e nada moral, mas apenas física – de um soldado pelos campos devastados, em que os próprios aliados se matam uns aos outros pela mera sobrevivência, travessia que é diretamente associada à própria experiência da falta de sentido da condição humana e da vida. É impressionante que Ichikawa o tenha feito apenas alguns anos após A Harpa da Birmânia.

Georges Franju é um dos grandes mestres injustiçados da história do cinema, que compôs uma filmografia absolutamente admirável, sem comparações, mas que permeneceu por isso à margem de um circuito de reconhecimento, afastando-se da nouvelle vague, ao fazer um cinema nitidamente clássico mas completamente invulgar. Os filmes de Franju são todos filmes políticos, desde seus primeiros documentários geniais (Hotel des Invalides e O Sangue das Bestas) até a forma como Franju vai resgatar, por exemplo, o cinema de Feuillade em Judex, numa homenagem incrivelmente poética e política, que nada tem de ingênua, mostrando a enorme sabedoria do cinema de Franju. A obsessão de Franju é a de olhar debaixo do tapete, desmascarar o que a sociedade vai empurrar para fora do olhar comum por ser inconveniente. Os Olhos sem Rosto, ou ainda mais, A Cabeça contra a Parede são dois filmes lindos, porque articulam uma certa denúncia contra uma sociedade que expele a diferença – e que assim gerou as Guerras Mundiais – e ao mesmo tempo constroem um discurso lírico, poético, dialogando com um cinema fantástico, mas sem abrir mão de uma encenação tipicamente realista. É essa estranha mistura entre uma encenação realista e política e um tom de cinema fantástico (ou, como queiram, sua inclinação ao surrealismo) que faz do cinema de Franju um admirável tour de force entre o possível e o ideal, entre o mundo como ele é e a possibilidade de o cinema transfigurar esse mundo através de uma fábula, mas, claro, uma fábula sempre realista. Em A Cabeça Contra a Parede há uma cena perturbadora que resume o cinema crítico de Franju: é quando o rapaz finalmente é liberto e vai para um cassino pedir emprego, e ele observa os olhos das pessoas vidrados na bolinha da roleta, e descobre, assim, de que o mundo de fora é tão assustador quanto o mundo do internato.

Não tenho mais energia para falar dos admiráveis filmes vagabundos de Mario Bava (sua mise en scene barroca, cheia de movimentos falsos, um filme de falsas aparências sobre a inevitabilidade e a impossibilidade do amor..) e dos dois filmes extraordinários de Michelangelo Frammartino. Em AS QUATRO VOLTAS há um plano-sequência dos mais extraordinários que já vi no cinema contemporâneo. Suas relações com o neorrealismo italiano são evidentes: um cinema de pura observação sobre o tempo, sobre a natureza, e sobre, é claro, a decadência. Mais italiano, impossível. Espero voltar a esses filmes um dia, quando voltar de minha viagem de uma semana. Acho difícil, pois o mês de outubro será cheio, então já escrevo algo aqui, mais como um registro.

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