Drive me lembra a famosa frase de Samuel Fuller de que tudo o que se precisa para se fazer um filme é “a girl and a gun”. Nicolas Winding Refn poderia acrescentar: “...e um carro!” A narrativa de Drive é profundamente banal, mas o que nos encanta é como o diretor consegue transformá-la por um cuidadoso domínio da linguagem cinematográfica, em seduzir o espectador através de uma manipulação dos nossos sentidos. Ou seja, o bom e velho cinema americano. Um certo cinema cool de referências nos vem imediatamente à cabeça, como o cinema do Tarantino, especialmente por alguns cacoetes como a narrativa elíptica, com abruptos flash forwards, que nos dão “um certo barato” sensorial. Se pensarmos em português, “Drive” ainda nos oferece outras camadas de leitura: a “direção” do carro e a “direção” do próprio filme, já que, de fato, o ator é um dublê de si mesmo, que a certo ponto veste uma máscara, numa das mais impressionantes cenas do cinema contemporâneo, em que a câmera lenta abdica de sua aura de fetiche para ser um mergulho fatalista corajoso e admirável, potencializado pela estonteante trilha sonora de Angelo Badalamenti (músico dos filmes de David Lynch) e de Cliff Martinez (ex-Red Hot Chili Peppers). Como se não bastasse, há ainda a impressionante atuação de Ryan Gosling, herdeira das comédias de Buster Keaton, ou ainda, fruto do “efeito Kuleshov”: uma “máscara branca” que compõe, de forma brilhante, uma mistura de extrema frieza e de uma enorme compaixão, melancolia, diante de seu futuro inevitável. Drive é uma bela alegoria sobre a inevitabilidade do mal, e todo o filme se desenvolve como uma tragédia. A sobriedade e a frieza do personagem de Gosling são quase a mesma do estilo de Nicolas Winding Refn, e elas não escondem tanto a profunda paixão desse personagem frio nem a profunda pulsão desse filme “frio”, meticulosamente decupado, em que o improviso parece ser completamente impossível. É dessa forma que vejo o filme com muito em comum com o recente trabalho dos Irmãos Coen (muito mais do que com Tarantino). É muito interessante compararmos Drive com Onde os Fracos Não Tem Vez: são dois filmes de persoanagens que se veem, pelas circunstâncias do destino, tendo que fugir de inimigos sanguinários por conta de um saco de dinheiro. Ambos os filmes possuem um prazer quase sarcástico em manipular as emoções do espectador, numa decupagem fina, meticulosamente planejada. Mas enquanto o cinema dos Irmãos Coen apontam para o absurdo da falta de sentido dessa desesperada corrida contra a inevitável vitória do mal, Drive parece apontar para uma pequena possibilidade de algo pulsar para além do plano: ainda é possível dizer “eu te amo”. Se ambos concordam que o cinema é “a girl and a gun”, Refn parece mais interessado na garota, enquanto os Coen na arma. Nesses breves momentos, Drive se mostra além de seus jogos narrativos e de sua falsa aderência ao cinema de gênero, para compor algo realmente raro e singular. Vamos ver seus próximos filmes!

Comentários

Marcus Sodré disse…
Bem deixe-me ver se consigo reproduzir.

Inicialmente, fiz uma brincadeirinha sobre o quão megalomaníaco de minha parte seria comentar sobre seu comentário de Drive. Mesmo assim, eu assumia esse diagnóstico auto-aplicado temporariamente.

Depois eu tentei evoluir para explicar o porque d'eu achar que vc tivesse sido corajosamente cauteloso.

Só que agora, após em minha segunda ou terceira releitura do seu comentário, creio ter feito não apenas um releitura, mas sim, uma nova leitura daquilo que vc escreveu. Nessa nova leitura, eis que me deparo com uma certa 'contenção de entusiasmo' ... coisa rara em vc: primeiro o raro entusiasmo, depois, o entusiasmo em tamanha proporção que precisa ser contido... e a tal ponto que, para que vc mesmo não perdesse seu auto-controle, como que num golpe de mestre, ao final, vc exclama seu elogio-desafio-convite-convocação com uma certa desconfiança no ar: - "Vamos ver seus próximos filmes!"

Mas, no fundo, vc enche a boca pra falar do recheio farto: além da "girl" e da "gun" tem um carro; fica encantado com o domínio da linguagem cinematográfica; da sedução bem posta; vc sente até um "certo barato"; as multiplas camadas de leitura do filme; tem uma das mais impressionantes cenas em camera lenta do cinema contemporâneo; tem uma trilha sonora irada; além da impressionante Ryan Gosling composta, magistralmente, de extrema frieza e enorme compaixão, tão naturalmente bem composto como se fácil fosse...

A paixão e a pulsão do frio - imediatamente após destacar essas ardentes características vc as resfria um pouco com o fogo brando da comparação com o recente trabalho dos irmão Cohen, a meu ver, em busca de torna-lo mais parecido com algo já visto, como que tomado por uma certa preguiça de ter de traduzir todas aquelas novas emoções que o filme ispiraram-lhe...afinal, "ainda é possível dizer 'eu te amo' " antes do fim, ou seja, é angustia pura até o final.

Enfim, meu caro, ainda que vc conceda o binômio 'raro' e 'singular' - que, a meu ver, mereceria quatro estrelas - eis o porque de eu considerar que fora uma crítica na qual o entusiasmo estivesse um tanto contido, embora não nos faltem substantivos elogiosos à obra.

Será isso ou faltou-me sensibilidade para depurar todo o conteúdo expresso?

Dito isso, recolho-me ao meu devido lugar de ex-aluno e fã além de agradecer-lhe os instigantes comentários bem como, reiterar minha admiração pela generosidade de seu compartilhamento de ideias...

Abração,
Marcus Sodré

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