Victor,
acabei vendo mais um filme do Sidney Lumet, o Serpico. Havia algum tempo que eu queria ver esse filme mas acaba deixando de lado. É curioso pensar nos seus primeiros filmes, como The fugitive kind e o homem do prego, com alguns outros filmes dos anos setenta, como Serpico e um dia de cão, por exemplo. Dez anos depois, Lumet certamente "amadureceu", no seu caminho em fazer filmes cada vez mais apresentáveis e no padrão da indústria hollywoodiana. Mas ao mesmo tempo, seu cinema continua interessado em personagens marginais, rebeldes que não se encaixam num sistema. Fico pensando que o que há em comum em diversos de seus filmes é um olhar sobre a liberdade, como é improvável para o homem ser livre quando ele inevitavelmente esbarra nas amarras conservadoras das instituições. Serpico e Um dia de cão são dois filmes que analisam as contradições das instituições americanas, como essas instituições não conseguiram acompanhar as transformações da sociedade americana, e como é preciso vigiar e punir quem não é a favor delas, quem não faz a engrenagem continuar girando, independentemente para onde ela gira. Um pouco disso também estava em seus primeiros filmes, mas de forma mais pungente, rebelde e, até certo ponto ingênua. Lumet parecia deslumbrado com certos artifícios do cinema europeu, e tentava se inserir nesse clube. Nesses filmes dos anos setenta, ele já busca se inserir em outra coisa: na tradição do cinema clássico americano, mas remodelando-o, atualizando-o. Mas ele quer se inserir nessa linhagem. Me lembro de uma frase recente do Bruno Safadi que diz que um artista deve dialogar com uma tradição anterior a ele, mas sempre levando-a para um outro lugar (ele disse algo do tipo). Acho que é isso que o Lumet procura fazer. Acho que esse filme se insere numa certa linhagem de um cinema americano dos anos setenta, que procurava "denunciar", mostrando as entranhas de um outro lado da sociedade e das instituições americanas que o cinema americano achava que não podia ou não cabia mostrar. Mas Lumet não era um Coppola, um Scorsese, muito menos um Hopper ou Hellman, que também eram cineastas que propunham um olhar para essas transformações de um cinema e de uma sociedade, mas buscavam na forma de seus filmes uma inquietude que traduzisse essa estado de espírito. Existe sim uma certa vontade de cinema nesses filmes de Lumet, mas existe sempre um desejo enorme (maior, primeiro) de fazer parte de (de se inserir em) essa tradição, da velha e eterna tradição do "cinema americano". No fundo, seus filmes possuem os valores éticos essenciais desse cinema.

Serpico poderia ser um western de John Ford. Quarenta anos depois é incrível como o filme permanece atual. Uma espécie de Tropa de Elite 2. Um filme que fala sobre o cenário eleitoral brasileiro, um filme que fala sobre a minha experiência no trabalho em órgãos públicos. Quando digo isso, não quero dizer que onde trabalhei há corrupção, longe disso. Mas acho que Serpico é um documentário sobre os órgãos públicos brasileiros porque há uma espécie de entropia que impede que as coisas funcionem como devem ser, que cada um faça a sua parte. Se você procurar simplesmente fazer a sua parte, você vai ser engolido por esse sistema, cuja mola motora é a ineficiência.

Serpico poderia ser um western de Budd Boetticher. Não o é pois ele tem muito mais valores de produção, e porque tem um grande tema. Boetticher tinha muito pouco, fazia filmes vagabundos, e a austeridade com que Boetticher encarava seu dever de fazer algo com o que se tinha é o que torna esses seus filmes um grande e comovente tour de force. O diretor estava do lado do seu personagem solitário, como ele.

Fico pensando em que medidas há um descompasso entre a postura de Lumet e a perspectiva de seu próprio personagem. Há um certo limite que Lumet não consegue ultrapassar para poder estar de fato ao lado de seu personagem. É isso o que me incomoda. Al Pacino ainda é um boneco nas mãos de um diretor. É como se Lumet usasse armas letais para denunciar a indústria bélica.

Mas ainda assim Serpico permanece atual. No que o filme me interessa? Em como Lumet, de forma romântica, lamenta pela impossibilidade de seus personagens serem livres, em como os filma encurralados pelo sistema que os engole, por como todos eles acabam inevitavelmente rumando para a solidão. Para manter-se fiel às suas convicções, não restou outra alternativa ao protagonista a não ser permanecer sozinho. É um filme triste, muito triste. No final, ele ganha um distintivo. Um pedaço de ferro por toda a "sua bravura". Um "reconhecimento" pelo seu ato de bravura. É isso o que está em jogo, somente um maldito reconhecimento? Uma medalha, um troféu, um prêmio num festival de cinema? Isso importa? Qual é a diferença? Pra que serve, se se acaba sozinho? Mas de que servem os amigos, se o mundo permanece como o é? Mas o que se pode fazer sem isso? Não se trata de utopia, do cinema político dos anos setenta. Trata-se de uma opção suicida. Trata-se de uma opção pelo fracasso. O fracasso, novamente ele. Se pudesse, talvez Serpico escolhesse outra coisa. Mas algo (que algo é esse?) o faz se lançar impiedosamente nessa opção rumo ao suicídio, ou ainda, ao fracasso.

Comentários

Postagens mais visitadas