Quando fazia a lista de meus filmes preferidos quando tinha meus vinte anos, selecionava os filmes mais pela força dramática e pela afinidade com os temas. Era por isso que entrava em minha lista filmes como O anjo azul, Gritos e sussurros ou A última gargalhada. São belos filmes. Ainda hoje os admiro. Mas hoje, mais velho, prefiro outros filmes que me encantam pela forma justa como ENCENAM um olhar próprio para o mundo.

É o caso de filmes como Mouchette ou L´Argent, ou ainda de Gertrud. Fico pensando nos últimos filmes desses grandes diretores que são Bresson ou Dreyer. Dreyer fez em Mikael uma declaração de princípios do seu cinema. Foi quando ele finalmente se libertou de uma mescla entre o cinema nórdico, o cinema griffithiano e um certo lado expressionista para buscar uma expressão própria. Mikael é um belo filme. Mas somente 40 anos depois foi que Dreyer conseguiu expressar-se em sua maturidade. Gertrud.

O que me encanta em Gertrud é a sua opção pelo anacronismo, ou ainda, sua aposta pelo fracasso. Gertrud não quer ser um filme moderno. Mas não é nada clássico. Já falei bastante por aqui que é um filme sobre o amor. Mas é também um filme sobre uma aposta. Uma aposta por um vir-a-ser, pelo sonho. Uma aposta por algo que, desde o extremo rigor do início, está claro que não pode ser. Ou seja, um filme sobre o fracasso.

Mas não se trata de uma descida ao inferno. Nem de melodrama. Não há culpa ou redenção. O que há é a opção da protagonista, e as consequências desse gesto. Não se trata de risco, ou mesmo de “opção”. Gertrud simplesmente faz o que deve fazer. Segue a si mesma. O que há é uma enorme autoconsciência da escolha pelo fracasso. Tampouco se trata de integridade ou honra. Não há outro caminho a não ser ser si mesma.

A precisão, o rigor e o cálculo da encenação de Dreyer testemunham de forma precisa, justa, o gesto decisivo de Gertrud. Refletem a posição ética do realizador. Dreyer não busca fazer jogos de sedução com o público, nem tampouco utilizar as artimanhas das surpresas e trapaças do cinema de espetáculo. Encena sua consciência das coisas com um certo pesar mas sem nunca fraquejar. É como se, assim como Gertrud, tivesse consciência da dificuldade de suas escolhas, mas que era preciso prosseguir com elas, custasse o que custasse.

Curiosamente o filme surge emocionante, se compararmos a posição de Dreyer com a de Gertrud. Distante dos modismos dos cinemas novos, Gertrud é o canto do cisne de Dreyer, filme distante de seu tempo e de todos os tempos possíveis. A solitária Gertrud reflete a posição do próprio Dreyer. Dreyer encena seu fracasso com uma enorme consciência de que seu gesto é simplesmente “uma garrafa jogada ao mar”. Ou ainda, seu filme é um gesto suicida.

Inesperadamente esse gesto ecoa.

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