Alguns apontamentos sobre dois singelos curtas do III Festival de Cinema de Penedo

MWANY, de Nivaldo Vasconcelos
NO INTERIOR DA MINHA MÃE, de Lucas Sá

O grande destaque do Festival de Cinema de Penedo foi um curta alagoano: MWANY, de Nivaldo Vasconcelos, acompanha a vida de Sonia André, moçambicana que reside em Alagoas com sua filha. O curta, no entanto, está menos preocupado em passar informações sobre sua personagem do que desvelar ao espectador um modo de ser, através de tarefas rotineiras, comuns, mas que revelam uma relação íntima entre cultura e ser, e os desafios de ser estrangeiro. MWANY comprova o bom momento do cinema alagoano, que vem mostrando nos últimos anos, alguns filmes e realizadores em processo de franco amadurecimento.

Ouvi um comentário de que MWANY era desinteressante porque sua personagem nada tinha de extraordinário que justificasse um filme. Pois justamente o grande mérito de MWANY é ver o mundo pela via do comum: a humanidade de MWANY está na forma como nos dá a ver o que é cultura, pois cultura são os modos de ser, o modo como se penteia o cabelo, como se enxágua uma roupa, como se sorri ou como se protege a pele. E justamente porque, acima de tudo, entendo que MWANY é menos um retrato de uma personagem - a moçambicana Sonia André - do que uma investigação poética do sentido de cultura e de um lar. Não é à toa que seu título é a palavra TERRA em um dos dialetos de Moçambique, terra natal de sua protagonista, e não SONIA. Ainda, para além de seu significado, MWANY exala, sem contar com sua sonoridade, uma textura visual, entre o M, o W e o Y. Texturas que vão sendo trabalhadas nas imagens, com uma poética frontal que remete ao cinema de Paradjanov, citação explícita do filme, que chega a utilizar uma cena de A Lenda da Fortaleza Suram. A citação a Paradjanov é uma das curiosas pontes que o filme procura fazer, entre a Geórgia e o cinema brasileiro, entre Moçambique e Alagoas, entre tão diferentes culturas (o Leste Europeu, a África, a América Latina), aproximando esses países periféricos em sua cor e em suas texturas.

Sonia André mora em Alagoas e busca fazer dessa terra outra o seu lar. Mantém a sua cultura e ao mesmo tempo se adapta a outro modo de ser. Sonia e sua filha, Thandy. MWANY é um filme sobre mulheres, em que os homens estão sempre fora de quadro. A mãe e a filha; o ontem e o hoje; o hoje e o amanhã. O que as une é a tentativa de fazer uma terra outra um lar. Ou seja, um diálogo. Por isso, o que é mais comovente em MWANY é a forma delicada como o diretor Nivaldo Vasconcelos aproximou-se de sua personagem. O filme começa com a câmera do lado de fora, acompanhando sua personagem entrar em casa. Ela entra, e o filme acontece quase todo dentro dessa casa. Ao final, vemo-la sair, e a câmera permanece dentro da casa. Todo o singelo percurso de MWANY é fazer com que nós espectadores também percebamos essa casa, ou ainda, essa TERRA, como um lar. E no final estamos do lado de dentro - espectadores, realizadores e personagens. Esse ponto de vista é que revela a humanidade do gesto de MWANY, em aproximar-se do outro sem retoque de exotismo ou de vitimização das minorias. Todo o percurso de MWANY é nos passar para o lado de dentro, e que ao final façamos desse filme (terra estrangeira) o nosso próprio lar.


Outra grande surpresa está em NO INTERIOR DA MINHA MÃE, esse singelo filme do realizador Lucas Sá. Surpresa por dois motivos. O primeiro é que Lucas é natural do Maranhão mas foi estudar cinema em Pelotas (na UFPEL). Entre São Luís e Pelotas, imagino que exista todo um abismo de coisas, dois continentes distantes desse mundo chamado Brasil. Segundo que o curta anterior de Lucas, O membro decaído, era um curta de decupagem, com uma mistura curiosa entre humor e suspense.

Em No interior da minha mãe, estamos num universo diferente, os documentários realizados em primeira pessoa. Em comum com O membro decaído talvez esteja o fato de esses curtas mostrarem apenas o ponto de vista do personagem-chave, com um radical uso da câmera subjetiva. Mas em No interior da minha mãe, Lucas se coloca numa posição íntima, observando sua casa, sua cidade e os momentos comuns de rotina com seus familiares.

Em No interior da minha mãe, Lucas volta para casa. Talvez esse seja o maior dos desafios do curta. Olhar ao redor. O curta não procura documentar uma cidade ou uma família, mas simplesmente viver um modo de ser. O cinema como forma de estar junto. O que temos são simplesmente fragmentos de um modo de ser. A afetividade se coloca não em primeiro plano, mas meio através do qual tudo perpassa, tudo escorre, como se fosse o próprio tempo. Ou seja, não é um filme sobre afetos mas um filme com afetos. Um filme em que o afeto não é "método" mas é tudo o que se tem. Esse afeto não é meramente nostálgico ou subalterno, pois o curta não é um institucional de sua família. A cidade, a família são vividos por uma olhar íntimo que costura relações através da montagem (composta de blocos de fragmentos) e do ponto-de-vista (a posição do realizador diante do mundo). Nesse ponto, No interior da minha mãe me lembra de alguns dos desafios de EUROPA, de Leonardo Mouramateus.

Ao final, Lucas reconfigura essa relação entre criação e vida de forma ambígua. Entre o conjunto de barbáries típicas da programação televisiva, surge um trecho de A Hora da Estrela. Macabéa é abandonada por seu noivo, que diz que ela é sem graça, um cabelo na sopa que não dá vontade de comer. Ela diz que ele vá embora. A televisão sendo filmada. Uma tela dentro da tela. O cinema dentro do cinema. O "cinema" dentro do cinema caseiro. O interior. Macabéa fica e ele se vai. Talvez possamos pensar que Macabéa não é a abandonada, e sim a que fica.

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MWANY e NO INTERIOR DE MINHA MÃE colocam possibilidades para o documentário brasileiro contemporâneo. Um trabalho íntimo e delicado, ligado às dramaturgias do comum. Não é preciso algo extraordinário, um personagem ou situação extraordinários para justificar um filme. Basta um olhar, basta saber observar o movimento do mundo. Deixar-se afetar pelo que passa despercebido. Pelo que nos faz. Esse é o gesto humanista desses filmes, a sua política da afetividade. Dois filmes nordestinos que olham para o outro - o estrangeiro, o interior - sem olhar de piedade, de exotismo, ou de vitimização. Não querem seduzir o espectador, não buscam convencê-lo pelo espectáculo ou pelo "bom gosto" de sua construção cênica. Há uma potência que surge do equilíbrio, da beleza desses pequenos gestos cotidianos. Esse movimento da brisa que invade nossas vidas sem que a gente se dê conta. Filmes que partem de um modo de ser, em que "mostrar" revela-se mais precioso do que "contar". Filmes repletos de vida mas sem excitação. Sem espalhafato. Filmes que procuram "con-viver" com aqueles que eles mostram. Filmes em que o próprio processo de produção é desmistificado, filmes que partem do possível, sem grandes equipamentos e com equipes mínimas.

Filmes que apontam um caminho e uma possibilidade para o cinema universitário, para o cinema nordestino, e especialmente para o cinema universitário nordestino. Se é que isso existe.

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