Deux jours, une nuit



DOIS DIAS, UMA NOITE
dos Irmãos Dardenne
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A trajetória do cinema dos Irmãos Dardenne é uma das mais sintomáticas do cinema contemporâneo. Em ROSETTA, os Dardennes estabeleceram de forma sólida um cinema que buscava uma dramaturgia mais pulsante para abordar os problemas humanistas da virada do século. Política e juventude eram expressas por uma dramaturgia do corpo, por uma personagem opaca, que mergulhava num asfixiante sentido de urgência. Seu impacto foi imediatamente reconhecido, potencializado pela Palma de Ouro em Cannes. Em seguida, os Dardennes se firmaram como grandes autores dando continuidade a esse cinema, em filmes como O FILHO e A CRIANÇA. Só que a partir desse último filme, começaram a surgir os sinais de esgotamento. A CRIANÇA já mostrava o desejo de continuidade e mudança do cinema dos Dardennes: ainda que a situação social e humana de urgência dos personagens era mantida, agora havia uma estética mais fluida, menos violenta e menos agressiva. Os filmes posteriores prosseguiam esse caminho de combinar um sentimento de mal estar com uma linguagem menos vertiginosa, mais palatável, menos radical. Num texto que escrevi sobre O GAROTO DA BICICLETA, eu já alertava para os dilemas dessa posição: os Dardennes encurralados pelo "cinema dos Dardennes", como se diluindo algo que eles já fizeram, e, ao mesmo tempo, buscando "domesticar" ou "apaziguar" o instinto visceral e asfixiante de seus primeiros filmes.

É certo que muitos autores buscam o tempo inteiro fazer e refazer sempre o mesmo filme: esse é o traço mais direto do "cinema de autor", em que uma assinatura torna-se reconhecível pela forma singular como um cineasta desenvolve os mesmos temas, as mesmas obsessões. Talvez o caso mais sintomático seja o cinema de Yasujiro Ozu, esse japonês que continuamente fazia sempre os mesmos filmes, e fez mais de quarenta assim. Mas se observarmos de forma atenta os filmes de Ozu - algo difícil - veremos que eles são tão iguais quanto igual é cada novo dia: igual e novo, renovado. Essa é a maestria do cinema de Ozu: sua capacidade de se renovar fazendo sempre o mesmo filme!

Não parece ser o caso do cinema dos Dardennes. DOIS DIAS, UMA NOITE, seu último filme, é quase um pastiche de ROSETTA, mas sem a força, a inventividade, a coerência e o vigor do filme de 1999. Temos uma mulher que corre atrás de seu emprego diante de uma situação de urgência. Mas aqui os Dardennes vão diluir ou apaziguar toda a violência de seu filme. ROSETTA é um filme asfixiante, enquanto DOIS DIAS, UMA NOITE torna essa busca palatável, quer nos fazer identificar, simpatizar com sua protagonista. Ou seja, os Dardennes estão se tornando o novo Ken Loach - e, com isso, não faço nenhum elogio!

O filme parte de uma premissa interessante: uma mulher é demitida pois seus companheiros de trabalho precisaram, numa votação, escolher entre a manutenção do emprego dela ou receber um bônus anual. Numa primeira votação, eles preferem receber o bônus, o que implicará em sua demissão. Ou seja, há um conflito entre o individual e o coletivo, ou ainda, os interesses materiais indivisuais fazem com que um grupo de pessoas se torne insensível às necessidades do outro (o capitalismo vence o comunismo). Farinha pouca, meu pirão primeiro! E salve-se quem puder! O filme é então uma corrida contra o tempo, em que a protagonista precisa convencer seus companheiros de trabalho a votarem a favor de sua manutenção, ainda que percam o bônus individual. A busca desenfreada pelo lucro e pela redução dos custos faz com que as empresas estimulem um clima de desumanização, jogando os funcionários uns contra os outros. O humano, o solidário, passa a ser secundário.

O problema, no entanto, não está no campo das intenções, mas em como os realizadores dão a ver esses dilemas, quais são as estratégias que utilizam para dar corpo essas intenções, e o resultado é muito frustrante. Os sucessivos encontros da protagonista com seus colegas de trabalho se desdobram sem muito aprofundamento ou variações. Algumas situações se desenvolvem de maneira um tanto constrangedora, como o choro do técnico de futebol ou a briga entre dois dos funcionários que acaba num soco. O constrangimento ocorre nem tanto pela situação em si mas pela forma atabalhoada como os diretores encenam esse encontro. A progressão dramática exagerada quase esbarra na caricatura, os personagens não são críveis, as situações não possuem desenvolvimento, a encenação quase toca no constrangedor. É nítida a dificuldade dos Dardennes em dar vida a essas pequenas situações que se sucedem. O desespero da personagem não tem progressão, o filme não consegue ganhar vida para além da descrição do roteiro. Se em ROSETTA, o corpo da personagem pulsa de urgência, o espaço da cidade pulsa em diálogo com os acontecimentos, e o som potencializa o percurso de desumanização da personagem, em DOIS DIAS, UMA NOITE, há apenas a ilustração de uma sucessão de acontecimentos sem maior força. Enquanto ROSETTA era uma obra de uma linguagem pulsante, DOIS DIAS apenas ilustra seu roteiro, desenvolvido sem grandes consequências. O casal principal mora numa casa tão bonitinha, cuja direção de arte parece os das novelas brasileiras. A forma como os Dardennes filmam a casa do casal é constrangedora. Dá vontade de trocar a vida de professor no Ceará e virar desempregado na França dos Dardennes...

DOIS DIAS, UMA NOITE é uma grande decepção, pois atenua o impacto crítico dos melhores filmes dos Dardennes, ao tornar esse drama "apresentável", "palatável", para um público médio. Acaba sendo um arrazoado de boas intenções moldadas para comover o espectador. O que me parece o oposto da potência do melhor cinema dos Dardennes. Urge que os Dardennes se coloquem numa posição de risco e revitalizem seu cinema. Rossellini, esse mago da encenação das questões da vida, percebeu que era preciso mudar para continuar o mesmo. Talvez isso sirva para os Dardennes, para que eles possam fugir de um cinema que está se revelando uma mera fórmula, sem brilho.

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