MFL 2017 - UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR

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Uma das coisas mais bacanas pelas quais lutei nessa MFL 2017 foi a sessão LONGAS LIVRES, em que selecionamos cinco filmes pouquíssimo vistos que dialogam com valores propostos pela mostra. Me dediquei ao máximo para escrever sobre dois deles: Um homem sentado no corredor, de Felipe André Silva, e Diário da greve, de Guilherme Sarmiento. São dois admiráveis pequenos filmes, bem no espírito do que eu acredito que deva ser a Mostra: a favor da liberdade e da independência do artista, sem se prender a discursos de palanque oportunistas ou politiqueiros.
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UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR
O mumblecore brasileiro de Felipe André Silva



A sequência inicial de UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR apresenta algumas das intenções do filme: a possibilidade de os corpos jovens estarem juntos e de ser um filme sobre a luz. Numa sala de ensaio, vemos um conjunto de corpos se movimentando numa espécie de coreografia, dança e academia. A câmera parada encena o grupo de forma frontal. Ao lado esquerdo, há um espelho; e ao direito, uma janela, através da qual entra a luz no ambiente (o plano não tem luz artificial). No plano seguinte, após o "exercício", os corpos estão relaxados, deitados ao chão. A luz cai ao longo do dia e vemos apenas um feixe de luz que entra pela janela. A agitação dos corpos se transforma em sombras que repousam na penumbra.

No plano seguinte, vemos uma apresentação curiosa dos personagens. Eles se movimentam no palco como átomos de uma molécula, até que cada um deles, um a cada vez, para em frente à câmera, e, de frente a ela, se apresenta para ... (quem? talvez nós, os espectadores).

UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR dialoga com algumas experiências entre o teatro e a dança contemporâneos, em especial, pela sua aparente despretensão e pela sua releitura do pop, com os trabalhos da cearense Andréia Pires.

Os planos mostram jovens no seu desafio de criar e viver. Assim, Felipe André Silva dá continuidade a seu projeto de cinema, em franca frontalidade e em caráter muito singular, convocando os seus amigos que possam ajudá-lo a lidar com seus momentos de angústia e solidão. "Vamos fazer um filme!". Dessa forma, Felipe vem construindo uma das mais singulares filmografias do cinema livre contemporâneo, que já rendeu o longa SANTA MÔNICA e uma dezena de curtas, sempre sem orçamento público e sem editais, realizados em regime de urgência.

Esses filmes têm em comum o desejo de respirar um cinema cool contemporâneo jovem, que encena seus desafios por meio de uma representação do corpo e da sexualidade, e enfrentando a difícil missão de encenar, de forma improvisada e com os atores, os diálogos. São filmes em que os personagens falam muito, e tentam encurtar essa distância entre eles, e também entre si mesmos, por meio desse desafio de se pôr em cena (o que um corpo pode) e por meio das palavras.

Como cinéfilo extremamente antenado, Felipe é diretamente influenciado pelo cinema contemporâneo, mas por uma escola que não rendeu bons frutos pelo menos aqui no Brasil: o cinema independente americano e especialmente a estética do mumblecore. Diretores como Joe Swanberg, Alex Ross Perry, Andrew Bujalski, Lynn Shelton, entre outros, estão na lista de referências do diretor.

Os planos são quase todos muito longos, e mostram jovens no seu desafio de criar e viver. Duas meninas montam um piquenique numa praça e aguardam e chegada da terceira. O som dos carros aumenta até um momento em que quase não conseguimos ouvir a conversa do trio. Corta para um plano frontal da avenida, em que os carros atravessam a Via Mangue. Vemos ao fundo o mangue em Recife ilhado por uma cerca que o afasta do asfalto. É o mesmo som infernal do trânsito que atravessa o apartamento em que os dois jovens se encontram na cena seguinte. A cidade também está ali.

A ênfase na linguagem verbal não significa que UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR seja apenas um filme de diálogos ou de roteiro. O trabalho de Felipe, que vem sendo aperfeiçoado a cada filme, reside em como, a partir de um modelo específico de produção (baixíssimo orçamento, produção de amigos, improviso de atores), é possível construir uma dramaturgia de personagens que mescle os diálogos (o som verbal), os movimentos do corpo, e também os silêncios. A conjunção desses três aspectos (voz, corpo e silêncio), mediante o plano longo e da câmera fixa, permite ao diretor compor uma forma de encenar as angústias de uma geração jovem. Os temas da amizade, do encontro e do afeto - lugares de base em torno do qual giram vários dos filmes do cinema contemporâneo, como, por exemplo, os filmes do Alumbramento - ganham então um novo contorno, uma nova roupagem.

Há uma sequência de quase seis minutos de câmera parada que é um bom exemplo dessas intenções. Os dois amigos vão jogar videogame no quarto, param de jogar, conversam sobre a escola e depois de um certo constrangimento, se beijam. A duração do plano, a opção do plano sequência, a imobilidade da câmera, a ênfase no diálogo com tom coloquial de improviso, a forma como os corpos se relacionam (o certo constrangimento, o clima de aumento da intimidade sexual) e especialmente como os diálogos são entrecruzados por momentos importantes de silêncio (aumentando o clima sexual e mesclando com o constrangimento dos corpos) mostram a estilística típica do cinema de Felipe em seus melhores momentos de realização e intimidade.

Os silêncios não acontecem apenas nos momentos em que os personagens não falam, mas também na própria banda sonora. Se o filme é repleto de músicas que conjugam com a proposta do filme (Amandinho, Brad Sucks, ...) ele possui momentos singulares de total suspensão das faixas sonoras, sugerindo um certo sentimento de suspensão dos personagens (o menino na fila do cinema que olha outro; uma menina que sai da boate e respira na rua). É nesse segundo momento de silêncio total que vemos o próprio diretor sentado na calçada. Penso que talvez Felipe seja esse homem sentado no corredor.

Em seguida, quase como em OUT ONE de Rivette, uma câmera na mão, até certo ponto atípica no filme, acompanha um ensaio de contato-improvisação no mesmo espaço da sequência inicial. É o primeiro momento do filme em que homens e mulheres se tocam.

A dramaturgia vai seguindo para frente: os dois meninos transam sem roupa no quarto, e o plano, agora, é mais fechado, sentimos suas respirações mais de perto. O filme vai se aproximando do corpo dos personagens, e reduz a sua distância inicial.

Logo em seguida o filme tem um recurso que dialoga com essas ambiguidades entre o cinema e o teatro. Um casal de namorados vai ao cinema para ver um filme. Mas ficamos com a impressão de que o filme que eles veem trata-se de um ensaio de teatro em que os dois representam uma cena do espetáculo para as três amigas que aparecem no início do filme. Depois do ensaio da cena, os cinco discutem sobre a composição dos dois personagens. Ou seja, é como se os personagens assistissem a um filme que fala do processo de uma peça de teatro em que os mesmos fazem parte. Os atores olham para si mesmos diante do processo de um espetáculo que acontece diante dos nossos olhos. É um espelho do próprio processo de realização do filme de Felipe.

Ao final do filme, os dois meninos saem de casa e vão para uma festa. Os corpos dançam, as luzes são artificiais e alguns desses personagens na festa olham para a câmera, mas não falam. Eles se apresentam para a câmera através dos seus gestos (do seu corpo, do seu olhar) e dos seus figurinos, dos seus penteados, dos seus modos de ser. Essa cena dialoga com a segunda sequência do filme (a dos personagens-átomos que se movem apressados até que param para a câmera): sinto que é como se esses personagens também estivessem nessa sala de ensaios, movimentando seus corpos e se exibindo para a câmera e para os outros. O cinema, essa grande festa, essa grande sala de ensaios do mundo, nada mais é do que uma pista de dança, onde os corpos estão para ver e para serem vistos. Nada mais do que isso é o ato de viver. A luz da cidade vai caindo; já é noite. Na boate, a luz é uma outra, que nem é a luz do dia nem mesmo é essa luz de penumbra que entra pela janela na sala de ensaios.

UM HOMEM SENTADO NO CORREDOR é todo cheio de presente. Não existe passado ou futuro. Não existe utopia. Se há dor, não há essa melancolia da depressão. Existe essa crença em estar junto e sair da solidão. Uma fé no presente e na presença. Uma fenomenologia simples e delicada do que é ser jovem hoje. Quase como se fosse uma brisa, nem fria nem quente.


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